Thursday, January 28, 2010

Invictus


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Clint Eastwood, 80 anos incompletos, continua sendo o extraordinário carpinteiro. Sua madeira de lei bem trabalhada faz toda a diferença. Invictus (2009), seu novo filme, é outro exemplar de cinema americano clássico lindamente deslocado no panorama atual. Numa época em que valoriza-se tanto a imagem 3D, eis um filme tridimensional em outros níveis.

Invictus é essencialmente um “filme esportivo” - atletas desacreditados irão conquistar a vitória importante antes do fim, sob música triunfal. A julgar pelos seus últimos filmes, suspeita-se que Eastwood esteja num processo de regressão nostálgica que o leva a fazer os filmes que ele talvez tenha visto quando jovem.

É o cinema do refluxo de sensações clássicas, como sua impressionante produção recente pode ilustrar tão bem (Menina de Ouro, A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, A Troca e Gran Torino). Foram todos realizados depois do seu 70o aniversário.

Em Invictus, Eastwood faz um filme sobre visão política e liderança. Como a própria arte é inevitavelmente política, temos aqui o esporte como projeção de idéias e poder, fruto da experiência de vida, outra constante na obra de Eastwood.

O personagem central é Nelson Mandela, o pacifista sul africano que, depois de 24 anos preso sob a repressão do apartheid, foi eleito presidente. O período histórico é o da dura transição democrática na África do Sul, em 1994.

O roteiro de Anthony Peckham adapta o livro Playing the Enemy: Nelson Mandela and the Game That Made a Nation (Jogando com o Inimigo: Nelson Mandela e o Jogo que Formou uma Nação), escrito por John Carlin.

Como de costume, a narrativa clássica de Eastwood é cristalina, sem qualquer vestígio de frescura. Vejam, por exemplo, a seqüência de abertura, que apresenta o apartheid em alguns belos segundos: garotos brancos jogam rugby num gramado viçoso. Lá longe, garotos negros jogam futebol na poeira. Uma estrada separa os dois campos, e nessa via passa um comboio de veículos levando Nelson Mandela.

Na África do Sul, o rugby, esporte popular nas colônias inglesas, tem a identidade cultural do apartheid por ser “jogo de branco”, dos afrikaners. Mandela irá usar o rugby como objeto de união e cicatrização social. Obviamente, um conceito cinematográfico que não sana os problemas sociais enormes do pais, mas, sem dúvida, um belo pensamento social que pode ter feito um grande bem na vida real.

Mandela chama o capitão da seleção nacional, Pierre Pienaar (Matt Damon), branco, família racista, para uma conversa. Pienaar sai do encontro impactado. Ele energiza sua equipe rumo à Copa do Mundo de rugby de 1995, realizada na própria África do Sul, sob o olhar de Mandela, motor do processo.

Ele também nos alimenta sabiamente com informação sobre um panorama histórico-racial a partir de cenas intimistas. Uma empregada doméstica não é apenas uma figurante muda (ou sorridente) ali no fundo, mas alguém que tem opinião, que se faz ouvir, que marca sua presença.

Os seguranças de Mandela poderiam existir num filme só para eles, personagens essenciais para ilustrar diferenças, ressentimentos e revisões históricas. Misturados racialmente por imposição inteligente de Mandela, são homens (policiais truculentos de formação, dos dois lados do apartheid) cujas expressões de surpresa constante ilustram os caminhos corajosos tomados por um político ganhador do Nobel da Paz. Melhor ainda quando algumas dessas surpresas são nosssas, como espectadores, num filme que ainda arranja espaço para uma cena estranhíssima (no melhor sentido) como a que utiliza um Jumbo 747. De onde veio aquilo?

Com cenário tão bem anunciado, Eastwood nos leva ao tradicional embate final, onde a África do Sul enfrenta a Nova Zelândia. Não é um problema para o espectador não saber nada de rugby, pois é tudo muito bem registrado, em imagem larga organizada com fusões e elipses em brilhante Panavision.

É curioso observar esse cinema de coração enorme feito por Eastwood, sua beleza quase sempre comovente, sua honestidade estética um prazer constante. É a história de uma vitória triunfal que realmente ocorreu na história real, algo que normalmente seria bom demais para ter sido verdade, transformada num filme à altura dessa história.

Filme visto no Plaza Casa Forte, Recife, Janeiro 2010

2 comments:

Carol de Assis said...

Belo texto, Kleber. Sincero e tocante, como imagino que seja o filme.

Redação VIP said...

Belo comentário! Meu sentimento após ver "Invictus" foi o mesmo. Um amigo meu tuitou, na saída do cinema: "Clint Eastwood não sabe brincar..."

E é verdade: ela começa a fazer um filme convencional e entrega uma obra única. Um filme maravilhoso.

Se puder, leia meu comentário sobre ele!

Abração,
Ricardo Garrido
http://vip.abril.com.br/cinema/2010/02/critica-invictus-de-clint-eastwood.shtml