Thursday, March 18, 2010

Elia Suleiman (entrevista)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Elia Suleiman, 49 anos, nasceu em Nazaré, Palestina, nos territórios ocupados por Israel. Tem construído uma obra cinematográfica extremamente pessoal, adotando naturalmente o olhar de um cronista de recursos dramáticos tão afiados quanto minimalistas sobre sua visão de uma vida normal do seu povo sob condições anormais de uma repressão histórica e fraticida. Fez um dos grandes filmes da década de 2000 (Intervenção Divina, 2002), infelizmente pouco visto, mas premiado no Festival de Cannes. Em maio do ano passado, exibiu novamente em competição em Cannes O Que Resta do Tempo (The Time That Remains), belíssimo retrato pintado sobre sua família, sua cidade e sua casa. Foi em Cannes que Suleiman recebeu a reportagem do Jornal do Commercio para uma conversa sobre identidade cultural e o humor como válvula sob a opressão.

JC – Por ser frequentemente descrito como um “cineasta palestino”, seu cinema é, talvez, excessivamente discutido na base do “político”. É uma carapuça que lhe cai bem, ou não?

ES – Exatamente, e não, não me cai bem. Vejo como uma posição preguiçosa da imprensa e da critica, de uma maneira geral, que terminam parando nesse nível, sem ir alem e enxergar o elemento humano, que deveria ser o motor de tudo. É como se vivessem dentro do status quo fornecido, do qual não querem se desviar e se deixar inspirar num nível humano, internacional e universal. A maneira mais fácil é puxar o microfone e perguntar “como é que os palestinos fazem isso, aquilo e aquilo outro?”, como se estivéssemos num zoológico. Como se não vivêssemos exatamente da mesma maneira que todos vivem nos outros lugares. Todos os povos, desde a primeira e segunda guerras, insistem em viver uma vida normal. Dito isso, é impossível ignorar que, numa determinada cidade, você cruza a rua e lá está um Jeep que pertence a um determinado exército, empatando os transeuntes.

KMF – Em relação a isso, o humor pode ser especialmente fértil sob a opressão social e política? Em Cannes 2009, tanto o seu filme, como os filmes romenos Policia Adjetivo e Histórias da Época de Ouro parecem ter esse ponto em comum.

ES – Pra falar a verdade, é difícil julgar. Eu diria que ‘o humor de um gueto’ vem, em parte, da necessidade de se aumentar, alongar o tempo, ou ganhar tempo, muitas vezes verticalmente. Ou seja, se você sabe que terá uma determinada quantidade de tempo na qual irá sobreviver sob condições adversas, seja de maneira constante ou até a hora em que será levado para a forca, uma maneira de alongar sua vida nessas condições seria de ‘poetizar’. Há uma enorme quantidade de poesia no humor. E nessa redimensão do tempo, ele te faz viver um momento melhor e mais longo. Ou pelo menos, uma medida de tempo não identificada. Para mim, o cinema tem essa capacidade de ressaltar esses momentos com o humor. O humor, aliás, precisa de uma particularidade relacionada ao ritmo, à deixa, a repetição, o arremate. Faz parte de uma musicalidade, e é preciso estar atento a esse ritmo.

KMF – Seu humor pode ser corretamente associado a uma idéia de Palestina sob, ou não, o peso de Israel?

Elia Suleiman – Eu não quero colocar um selo nisso. As pessoas têm um determinado tipo de humor por questões de personalidade, e não por causa de uma ‘condição social’. É possível vermos alguém que seja muito engraçado, e essa pessoa pertencer às classes abastadas. Mas um certo tipo de humor, num determinado meio social, que pode fazer parte de um sentido de guetificação, de desespero e abandono, e o resultado disso pode ser o que chamamos de “humor negro”, ironia, e nesses casos, sim, é possível. No entanto, eu não consigo ser objetivo o suficiente para me incluir nessa teoria.

KMF - O Que Resta do Tempo é extremamente generoso com os espaços que você filma, privilegiando o plano aberto. Há uma intenção de se registrar não apenas um estado de espírito, mas também os espaços físicos, não muito distante de um documento?


ES - Meu filme não tem a pretensão de nem ao menos tentar fazer um retrato de Nazaré. Há algumas maneiras de entender aquele espaço, a primeira delas é ir lá conhecer e aprender como uma testemunha ocular, se relacionando por dentro, culturalmente. Uma outra maneira é ler perspectivas diferentes sobre lugares como Nazaré. Meu filme não lhe informa nada alem do que ele próprio significa, ou é. Por um lado, eu não tenho a autoridade de traduzir o estado de espírito de um povo, mas de expressar o que eu sinto. Não acho que o filme deva ser visto como uma tese sócio-política sobre um estado de coisas e uma sociedade. Ao assistir um filme feito por mim, peço que deixe o seu racional para trás, e também sua fome natural por informação. Creio que há pouca informação para se obter através das imagens, exceto, claro, pelo estímulo de ir atrás de mais informações.

KMF - A idéia de seu filme como um estado de espírito lhe agrada?

ES – Sim, o meu. Se algo der errado, eu poria a culpa no meu jeito de filmar, e em ninguém mais. Eu tenho uma queda clara pela ambientação da “terra de ninguém”, de uma situação estática, aquele momento em que não venta. Isso me interessa especialmente quanto à questão humana. Isso, claro, me leva a Samuel Becket, que também parece ter essa tendência de achar mais interessantes aqueles momentos em que não há nada acontecendo. Há sempre referencias a uma espécie de vácuo, mas que são promessas de ação, de mudança, pois antecedem o momento da explosão.

KMF - A cena onde as crianças assistem a Spartacus, de Stanley Kubrick, na escola é uma lembrança de infância sua? Há uma leitura política clara relacionada, talvez, à opressão.

ES - Na verdade, meu irmão viu Spartacus. Ele é quatro anos mais velho do que eu, estudávamos na mesma escola. Eu roubei essa experiência dele, assim como roubei muitas outras que terminaram sendo usadas nos meus filmes. Foi também o coral no qual ele cantava que ganhou o prêmio de melhor musica em hebreu, e não eu, pois não sabia nem nunca soube cantar num coral. Portanto, há essa mistura de referências pessoais que podem não ser as minhas experiências pessoais, mas que são verdadeiras, de qualquer forma. Ao mesmo tempo, nunca tome uma verdade como o ponto final nos meus filmes, mas apenas como um ponto de partida. A partir daí, temos ligações concretas com uma realidade vivida por mim, ou por muitos que existiam ao redor de mim.

No comments: