Friday, August 21, 2009

Avatar Trailer


Baixei o trailer do Avatar - http://www.apple.com/trailers/fox/avatar/ -, do James Cameron. Vendo as imagens de florestas digitais penduradas no vácuo. A indústria aposta no filme como oportunidade de reequipar o parque exibidor mundial para o 3D.

Sem medo algum de ver meu queixo cair em dezembro, e me apaixonar pelo filme, esse trailer, hoje, parece apontar para uma confirmação impressionante do que já temos tido ao longo dos últimos 10 anos. O look abraça o aspecto 'videogame', talvez fechando por completo a relação de namoro que temos tido entre o cinema e as imagens sintetizadas dos jogos. Me lembrei dos delírios de amigos com o look do GTA IV, enquanto que pra mim, é apenas um look de videogame.

Foi uma caminhada e tanto (Tron e Videodrome - 1982 - The Lawnmower Man - 1991 - The Matrix - 1999 - Final Fantasy - 2001 - A Scanner Darkly - 2006, Beowulf / 2007) de mundos vituais, não só de maneira assumida, mas na nossa percepção de que todo o cenário é um simulacro estranho, muitas vezes irritante, da realidade. Irritante pelo aspecto árido, morto.

Para nós, cinéfilos brasileiros, há ainda uma preocupação extra que, no caso de Avatar, adiciona mais uma camada de artifício ao todo. A dublagem. Rumores da indústria apontam que "não seria possível legendar" filmes em 3D por ser o processo caro e complicado. Eu vi 'Up' em Cannes legendado e tudo me pareceu lindo, e acho improvável que o processo seja mais caro do que pagar a atores/dubladores e remixar o filme para cada país.

Se a partir de agora, a indústria ditar que tudo o que veremos (num mundo que abraça o 3D como o mais incrível e importante avanço da história da imagem em movimento) será dublado, temos mais um prego no caixão da experiência cinematográfica que estávamos tendo, até agora, há décadas.

Não são só as imagens limpas, sem batimento, grão ou risco, mas imagens sem identidade também na voz. Imagens sem voz não como escolha (cópias dubladas e legendadas), mas como imposição industrial (cópias apenas dubladas).

Outra coisa me chama a atenção no trailer, algo que também me chamou a atenção essa semana vendo uma chamada de Os Normais 2, na Globo. Seria uma nova tendência? A pergunta é: sobre o que é o filme? No site da Apple, achei alguma informação, aqui traduzida, sobre Avatar:

AVATAR nos leva a um novo mundo espetacular muito além da sua imaginação, onde um herói relutante embarca numa jornada de redenção e descobertas, liderando uma batalha heróica para salvar toda uma civilização.

Hmm. Soa como uma farofa genérica.

Essa semana, revi o Two Lovers, de James Gray. O filme se passa em apartamentos aconchegantes e ruas reais de Nova York. Há algum tipo de alívio nisso. K.M.F

A Teta Assustada


Cinema mulher.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Associar o olhar de quem filma à questão do gênero é uma observação constante no cinema. É uma procura válida, considerando que os homens detém maioria esmagadora do espaço, enquanto as mulheres lutam por um lugar desde sempre. Isso leva muitos a procurar uma coisa misteriosa chamada “o olhar feminino” toda vez que uma mulher filma. No caso de A Teta Assustada (La Teta Asustada, 2009), da cineasta Claudia Llosa, a constatação é clara, num exemplo de cinema da mulher.

Mesmo que termos relacionados à percepção de gêneros (mulher, gay, macho) extrapolem a mera catalogação e análise de discurso e soem simplesmente pejorativos, obras como A Teta Assustada parecem servir de resposta para um mundo dominado por filmes de testosterona, feitos por homens e que investem na destruição. No filme de Llosa, temos um longo ato de reconstrução nos seus 95 minutos. É algo muito fêmea.

A Teta Assustada ganhou o Urso de Ouro em Berlim esse ano. Essa produção peruana, co-produzida com dinheiro espanhol, tem um certo ar de filme para exportação, muito embora os prazeres da sua beleza sejam reais e freqüentes.

A questão central é o ponto de vista feminino a partir de uma herança de violências contra o corpo da mulher. Essa brutalidade faz parte da história recente do Peru, informação liberada rápida e didaticamente. Um prólogo forte, com a tela do cinema em preto, nos passa o ódio pelo desrespeito à mulher, e estabelece a personagem central, Fausta (Magaly Solier).

Essa garota-mulher de beleza exótica e local é um daqueles rostos cartão-postal que defendem o filme a cada cena. Ela dá à obra uma certa embalagem de latinidade para exportação, acrescida de uma poesia crua normalmente associada ao realismo fantástico, outra expectativa do olhar estrangeiro sobre essa cultura.

Fausta, um bichinho do mato, trabalha como empregada doméstica para uma pianista da classe alta, em Lima. Seu tio, que a quer bem, acredita que ela é vítima da “teta assustada”, onde o leite angustiado da mãe é passado para a filha pelo peito. Fausta, de fato, nasceu em meio ao horror.

Ela precisa administrar pelo menos duas questões essenciais. A primeira, enterrar o cadáver da sua sofrida mãe, ainda guardado em casa no povoado onde vive. A segunda questão envolve seu próprio corpo, que ela parece ter blindado contra toda e qualquer possibilidade de violência por parte de homens. Não é à toa que Fausta sente-se tão desconfortável nas curiosas sequências de casamento que pontuam a narrativa. São duas idéias ricas em significados e que dão ao filme sustento dramático marcante.

É um filme de detalhes, alguns deles forçando a relação do espectador com uma série de signos. Llosa filma repetidamente um portão mecânico, por exemplo, tão típico na nossa América Latina dividida entre o lado de fora (pobreza) e o lado de dentro (riqueza). Talvez exista ainda uma leitura sexual para a relação do portão com a personagem, pois é ela quem sempre aciona o abre e fecha da barreira. Há pombas brancas em cena e batatas também, como elemento de segurança e vida que cresce morta. Mais tarde, vida que cresce viva.

As imagens fluem, as cores são fortes e Llosa filma com economia segura. Seu filme trilha a linha tênue que separa o intrigante do efeito calculado. No geral, sai ganhando a intriga da beleza de uma delicadeza inegavelmente feminina.

Filme revisto no Cinema da Fundação, Recife, Agosto 2009

The Hangover (Se Beber Não Case)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Se Beber Não Case (The Hangover, EUA, 2009) acertou na mosca comercial. Tornou-se a comédia de maior sucesso dos últimos 25 anos nos EUA, título que ainda pertencia a Um Tira da Pesada (Beverly Hills Cop, 1984). É um filme bem articulado, calculado para conquistar o público masculino americano que compõe uma cultura peculiar na administração das suas culpas sexuais.

O filme parece ter sido armado a partir de pesquisas de marketing feitas nas portas de cinemas. Esse passatempo para rapazes tem como antepassado o outro hit gigante de tantos verões passados, o verdadeiramente mal criado Clube dos Cafajestes (National Lampoon's Animal House, 1978), de John Landis, que, de alguma forma, soava bem mais natural e livre do que esse aqui.

Por ser moderno, segue a linha secretamente carola do muito bom O Virgem de 40 Anos, de Judd Apatow, e do longo Penetras Bons de Bico, de David Dobkin. Assim como Se Beber Não Case, os dois filmes citados trazem um grupo de homens que, a partir da amizade que os une, irão passar por uma aventura. Nos três, a instituição do casamento é a âncora moral de tudo.

Desta vez, a aventura envolve um mistério, explicada pela idéia de que todos sofrem de uma ressaca monstruosa. Parte do pacote químico consumido envolvia o ‘boa noite Cinderela’, a droga que põe a vítima para dormir e cria um lapso de esquecimento. Útil para os prazeres culpados aqui mostrados e para o filme como um todo.

Na cultura americana, Las Vegas é uma espécie de zona franca moral onde o indivíduo pode soltar os cachorros nos prazeres que o dinheiro compra, longe de suas cidades e à solta na chamada ‘sin city’ (cidade do pecado). Talvez seja bem visto socialmente pelo fato de ir a Las Vegas significar, indiretamente, que há situação financeira saudável por parte do cidadão, e que lá ele poderá comprar o seu prazer, gerando ainda mais capital. Pelo jeito, é tudo muito bem aceito por famílias, namoradas, noivas e esposas, uma vez que “o que acontece em Vegas, fica em Vegas”. Esse tipo de coisa foi abordado num dos segmentos do bem melhor Vamos Nessa (Go, 1999), de Doug Liman.

Às vésperas do casamento de Doug (Justin Bartha), ele e seus amigos Phil (Bradley Cooper), Stu (Ed Helms) e Alan (Zach Galifianakis) vão comemorar nos hotéis e cassinos. A noiva de Doug passa o filme se maquiando preocupada e a namorada de Stu é uma bruaca dominadora. A personagem mulher mais simpática em cena é uma prostituta Disney (Heather Graham). É de se suspeitar que os realizadores não têm muito contato com mulheres.

Acordando na manhã seguinte, Doug está desaparecido, e os três não lembram de nada. O roteiro mantém o interesse, especialmente ao criar terreno para o que talvez seja (excetuando as de Animal House) a farra mais absurda já mostrada no cinema, noite revelada em detalhes engraçados.

Um aspecto curioso é ver que o mistério é elucidado através de ‘imagens de arquivo’ (câmeras de segurança, fotografias). O choque entre a razão sóbria e o fato registrado em imagem é dramático como humor, mesmo que homens sensatos nas suas vidas comuns se vejam roubando uma viatura policial ou abduzindo o tigre de estimação de Mike Tyson.

A presença de Tyson no filme é o tipo de detalhe que explica, em parte, o sucesso de Se Beber Não Case. Carismático, engraçado e fã de Phil Collins, acrescenta tom absurdo ao todo. Há também a participação de uma bicha chinesa que acredita no chilique como instrumento de ameaça.

No final das contas, temos uma comédia masculina que consegue evitar o sexo filmado como o diabo corre da cruz (sexo é objeto de repulsa no mercado hollywoodiano hoje), que explora a liberdade paga e sem memória, e com a redenção moral de um altar no final. Um casório no final é elemento indispensável nesse tipo de produto.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, Agosto 2009

Sunday, August 16, 2009

Vinheta #2 do Janela Internacional de Cinema do Recife

Eu havia feito a 1a vinheta do Janela (posrtada aqui), e agora entrou no ar a 2a, feita por Gabriel Mascaro. Usa uma obra de Banksy, artista inglês.

Thursday, August 13, 2009

Drag me to Hell


O Horror Oral de Sam Raimi.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A gente reclama de Hollywood, da monotonia da sua produção e, por tabela, da programação dos multiplexes, mas a verdade é que o cinemão americano, por linhas talvez tortas, termina surpreendendo pela diversidade. Essa semana, por exemplo, temos não apenas a anomalia que deve ser vista chamada Brüno, com Sascha Baron Cohen, mas também essa deliciosa baderna cinéfila que é Arrasta-me Para o Inferno (Drag Me To Hell, 2009), filme de Sam Raimi, ambos produções da Universal.

Se Brüno é fruto exclusivo do nosso mundo na primeira década do século 21, o filme de Raimi parece existir com base no passado do cinema comercial classe B feito nos EUA, nos filmes e séries de terror dos anos 60 e 70, como The Twilight Zone (Além da Imaginação) ou A Casa da Noite Eterna (Legend of Hell House, 1973). É um desses filmes onde o espectador tem a certeza de estar se divertindo tanto quanto o cineasta que o fez.

É a história de uma garota bacana chamada Christine (Alison Lohman), com namorado companheiro Clay (Justin Long). Ela trabalha com empréstimos num banco e descobre horrorizada que foi amaldiçoada por uma cliente idosa, Dona Gamush (Lorna Raver).

A maldição veio depois que Christine recusou um empréstimo para a cliente, decisão tomada pela nossa heroína de bom coração a partir de exigências de produtividade no banco e medo de perder uma promoção. Competitividade capitalista e liquidez garantida podem levar alguns a ter um encosto por perto, cuidado.

Na verdade, “idosa” não é a palavra certa para descrever a Dona Sylvia Ganush, pois ela é apresentada como o pesadelo perfeito da “velha debaixo da cama”. Séria, voz rouca, chapa nos dentes e um lenço na cabeça. Para americanos, a lista de horrores ainda inclui um espesso sotaque estrangeiro. É uma “velha”, no sentido mais aterrorizante do termo, parte integrante da psicologia infantil mais sombria.

Dizem que os dois gêneros de cinema mais difíceis de acertar são o horror e a comédia. Em termos práticos, a eficácia de cada um pode ser checada em reações físicas no espectador, seja rindo ou se encolhendo na cadeira, não raramente pulando ou contorcendo-se, com asma cômica ou boca seca. Dos dois gêneros, muito raramente surgem frutos que unem de maneira igualitária o medo e a graça. Esse é o caso de Arrasta-me Para o Inferno.

Sam Raimi tem a mão firme de um autor que escreve com caligrafia pessoal. Foi um desses talentos natos recrutados pela grande indústria a partir de primeiras experiências totalmente independentes que rodaram o mundo, como o clássico espetacular da invenção e da câmera absurda que é A Morte do Demônio (The Evil Dead, 1983), feito por ele e seus amigos em 16mm e orçamento zero.

Talvez Hollywood tenha aberto os olhos para o trabalho de Raimi depois que dirigiu o delirante Darkman (1990) para a Universal e, encurtando a história, Raimi é hoje o homem por trás do sucesso de bilhões de dólares da franquia Homem Aranha, que vai agora para o quarto filme com ele ainda dirigindo.

Isso parece gerar um prazer ainda maior de vê-lo fazendo um filme pequeno como Arrasta-me Para o Inferno. Nesse tipo de cinema B, algo não funciona tão perfeitamente como deveria, o filme em si talvez deixe a desejar em partes, mas os prazeres são enormes ao longo de praticamente toda a duração, e sensação geral é a melhor possivel.

Vale observar curiosidades alarmantes nesse filme. Raimi não apenas aposta num trabalho de som radical, misto de “som clássico” amparado por trilha sonora de Christopher Young acrescida da agressividade das mixagens modernas, mas há uma engraçada fixação oral do filme (e de Raimi) em relação ao terror. Há muita boca aberta, ataque de boca, mordidas e líquidos indesejáveis entrando e saindo de bocas. Veja, com a boca tapada.

PS: Outra coisa sobre o fator estrangeiro da bruxa Ganush, e que nos confirma aspectos nefastos (mas sempre reveladores) da cultura americana. Além de ela ter sotaque, todas as pessoas intimamente relacionadas com o mal, até mesmo um guru benigno, tem a aparência de não-americano, ou sotaque de fora. Na verdade, são mexicanos ou europeus do leste. Nossa heroína, claro, que nada tem a ver com o mal, mas que é apenas vítima, é loirinha e americana como uma torta de maçã.


PS: A pré-estréia na qual vi o filme sábado, 8 de agosto, foi um pesadelo por si só. A imagem desfocava constantemente na sala 4 do UCI Boa Viagem, às vezes radicalmente (as legendas viravam borrões brancos indecifráveis). Espectadores gritavam (com o defeito), saíam para reclamar, o filme parou numa cena tensa, três minutos sem qualquer informação, o filme volta, desenquadrado. Nenhum pedido de desculpas, nenhuma cortesia (como nos EUA...) para que o espectador volte outro dia sem ter que pagar. Enfim, o UCI Boa Viagem, com 11 anos, está mais para uma sala de 2a. rodada, mas com ingressos caros de sala de 1a. Pena.

Tempos de Paz


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Daniel Filho está meio que no topo. Já nos seus 70, se manteve à frente da TV, do teatro e do cinema no Brasil ao longo dos últimos 40 anos, sempre em posições de liderança. Nos últimos dez anos, parece ter encontrado um nicho gigantesco junto à Globo Filmes onde tem a liberdade de fazer a sua musculação criativa e comercial com uma série de sete filmes em oito anos, todos populares e que incluem os dois Se Eu Fosse Você, vistos por mais de nove milhões de brasileiros. E segue fazendo seu cinema com mais um exercício chamado Tempos de Paz (Brasil, 2009), com Tony Ramos e Dan Stulbach.

Ao se debruçar sobre os filmes de Daniel Filho, há sempre uma tensão curiosa para com o observador que não pode se considerar um admirador do que ele filma. Temos um homem do entretenimento brasileiro, talvez o maior nome de uma indústria de áudio-visual que ainda engatinha, associado diretamente a marcos históricos da cultura nesse país, como a novela Dancin’ Days (1978) e a um filme como Cidade de Deus, que assina como produtor associado.

Seus filmes recentes, como A Partilha (2001) ou Primo Basílio (2007) ilustram seu discurso, já muito conhecido, que é o de sempre se comunicar com o grande público. Parece estar fazendo bem esse trabalho há décadas. Essa busca pelo público tem a contrapartida, por parte dele, como realizador, de fazer filmes que estão acima da média brasileira de mercado, produções fluentes, com atuações corretas e roteiros funcionais que contam histórias.

Normalmente, seriam filmes medíocres se a média brasileira não fosse tão ruim. Como estamos, os filmes de Daniel Filho são os melhores produtos comerciais que temos, numa proposta nacional de mercado, público e lucro através de uma constância na sua produção.

Depois de Se Eu Fosse Você 2, lançado em janeiro, ele nos traz esse produto aparentemente pequeno, uma adaptação da peça Novas Diretrizes em Tempos de Paz, de Bosco Brasil. O resultado é curioso.

É essencialmente um diálogo teatral entre dois personagens antagônicos, Segismundo (Ramos) e Clausewitz (Stulbach), o primeiro, um chefe da alfândega no Rio de Janeiro em abril de 1945. O segundo é um ator polonês que desembarca no porto vindo da Europa. O brasileiro esteve à frente de horrores como integrante da policia de Getúlio Vargas, o polonês sofreu horrores do nazismo. O próprio Daniel Filho interpreta uma vitima política de Segismundo, homem íntegro que tenta entender o porquê da violência contra a sua pessoa.

Tempos de Paz parece abraçar as origens teatrais do material encenado, tentativa de o cinema honrar o palco, e isso inclui até mesmo a buzina do navio ouvida de tempos em tempos, com a identidade sonora de que estaria sendo operada por algum contra-regra.

O texto parece achatado, no sentido de que tudo o que é dito parece se bastar, sem entrelinhas ou dubiedades, levando progressivamente a momentos de dramaticidade que chamam sempre um virtuosismo terrivelmente piegas. Talvez seja o segredo da narrativa popularesca, uma situação sem nuances que levará a uma explosão de emoção encenada e pontuada.

O personagem Segismundo, um ignorante com passado sofrido, burocrata infernal e capacho sem escrúpulos, irá se curvar diante do poder da arte de um homem puro. Vale observar que, por outro lado, o artificialismo constante é finalmente assumido com alguma delicadeza.

Stulbach parece destacar-se com a alegria evidente de quem adora seu personagem. Ele e Ramos dividem o espaço cênico como num espetáculo popular encenado sexta à noite, com casa lotada. Poderá ser um sucesso para o nicho inexistente no Brasil de filmes pequenos com pretensões populares.

PS: Stulbach, durante a projeção, me lembrou não apenas do Tom Hanks, mas do Hanks de O Terminal, de Spielberg, preso numa situação semelhante, e pintado com tintas mesmas, a do bom homem que conquista a burocracia.

Filme visto no Box Cinemas, Recife, Agosto 2009

Pornochancheiro

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Wednesday, August 12, 2009

Brüno


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Há algo de atraente na feiúra de Brüno (EUA, 2009), filme dirigido por Larry Charles, mas que pertence ao ator e arte-anarquista inglês Sacha Baron Cohen. Ele interpreta o personagem titular, um jornalista espetacularmente gay, fascinado pelo mundo da moda e das celebridades. Talvez o filme não seja muito bem sucedido como proposta completa e fechada de uma comédia, mas termina sendo notável pela sua capacidade de desfigurar artisticamente um estado de coisas que já observamos com perplexidade real, diariamente.

Cohen impressionou com Borat (2006), um ‘documentira’ muito engraçado sobre, em termos gerais, a dificuldade que os EUA têm de lidar com o elemento estrangeiro. A estética do constrangimento tão bem pesquisada por Cohen já era o centro das atenções, atraindo vítimas insuspeitas para serem expostas pela sua ignorância, racismo e preconceito.

Em Brüno, ele expande seu raio de ação, e parece ter como alvo a sociedade moderna cujo epicentro continua sendo os EUA. Na verdade, é até difícil definir o quê Cohen está mirando nesse filme, que é o equivalente hollywoodiano (o estúdio por trás é a “Üniversal”) de uma bomba de prego toscamente montada. O filme é uma benvinda anomalia.

O eixo de Brüno aparenta ser a representação e percepção do homossexualismo, aqui personificado pelo fashionista austríaco de 1.90m, geneticamente incapaz de estar a menos de um metro de uma mulher.

Além de termos um pastor evangélico que cura homossexualidade (extensamente ridicularizado), há o clímax do filme, seqüência espetacular construída para dar corda numa platéia (dentro e fora do filme) que não parece entender que o homossexualismo existe e faz parte do mundo. Como sempre, planos de reação são o ouro desse tipo de investigação, e cada um deles aqui apresentado traz carga dramática grande.

No entanto, Brüno sai dando tiro não só em relação à percepção do ser gay.

“Madonna tem o dela, Brangelina tem o deles, eu também tenho” diz Brüno ao abrir uma caixa de papelão na esteira de bagagens do aeroporto, com um bebê africano dentro. O infante - trocado na África por um iPod - passa a usar uma camisetinha colada com a palavra “Gayby” estampada.

Idéias como estas dão conta, de uma só vez, do descaso do mundo rico para com a África, das celebridades e de suas excentricidades super divulgadas, dos valores de um mundo. Fica difícil, por exemplo, não lembrar daquele incidente com Michael Jackson pendurando seu bebê de uma varanda ao vermos fotos de Brüno e seu filho, o pai dentro de uma roupa de apicultura, o garotinho coberto de abelhas desprotegido.

Um outro momento inteligente envolve Paula Abdul sentando em mexicanos durante uma entrevista, interpretação perfeita para as diferenças que existem nos EUA, especialmente em Los Angeles. Está tudo lá, distorcido pelas lentes da anarquia.

Curiosamente, o efeito do filme está mais no todo do que nas partes. Um número de sequências maior do que o aceitável não parece funcionar, ficando o espectador a entender a idéia, mas a lamentar o resultado. Uma ida à Faixa de Gaza chama mais a atenção pela coragem da empreitada do que pelo efeito pretendido, e uma tentativa de destruir a reputação sexual de um político (Ron Paul) deixa apenas um gosto ruim na boca.

Essa tensão do constrangimento e do confronto vem de experiências não esclarecidas entre a realidade (Harrison Ford não quis fazer parte, subentende-se...) e a encenação (atores trabalhando para o filme, como no hotel, a própria Abdul). É um curioso jogo de cena que, de alguma forma, Eduardo Coutinho talvez ache interessante, borrando as linhas entre tensão registrada e tensão encenada.

Essa dúvida constante pode ser a principal riqueza do filme. Brüno talvez seja o repórter principal do mau gosto, o Perez Hilton do cinema, o E! Entertainment News estilizado, o enterro de Michael Jackson transformado em cena filmada. Seu filme de cinema traveste-se de TV para se tornar uma caricatura fiel de como as coisas têm sido.

Há algo de muito forte e obstinado nas entrelinhas do trabalho de Cohen e do seu provável mentor intelectual, o comediante americano Andy Kaufman, falecido precocemente em 1984. A obra de Kaufman ganhou um belo filme pelas mãos de Milos Forman, Man on the Moon (O Mundo de Andy, 1999).

Os dois artistas, judeus de origem, têm algum tipo de cruzada apaixonada contra os que fazem do mundo um espaço menor do ponto de vista das idéias, das diferenças. Resta abrir o debate para questionar os métodos de Cohen, que toca o terror ético armado com câmeras. É o mais próximo que temos do Coringa de Batman, livre, solto e bem pago, fazendo filmes. No caso de Cohen, ele não perguntaria "Why So Serious?", mas talvez o seu direcionamento seja "Porquê tão tacanha?". Aparenta estar lutando ferozmente contra isso.

PS: Adorei Brüno levando chibatadas da virgem.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, Agosto 2009

Monday, August 10, 2009

Os 50 MELHORES Filmes da 2a. Guerra (Time Out)


A Time Out (Londres) propõe mais uma lista, a dos 50 GREATEST Filmes da 2a. Guerra Mundial, preparando terreno para o lançamento de Bastardos Inglórios, de Tarantino. Essas listas são sempre um prazerzinho, especialmente quando o filme que ocupa o Número 1 bate com o seu próprio filme NÚMERO 1.

O link é esse - http://www.timeout.com/film/features/show-feature/8357/the-50-greatest-world-war-two-movies-part-one.html, em inglês, claro.

Leiam os comentários de Quentin Tarantino e vejam como ele acerta todos, exceto, claro, seu discurso 'bulshit' (polido, educado, medido e pesado) sobre O Resgate do Soldado Ryan, de Spielberg. K.M.F

Friday, August 7, 2009

O Multiplex Global


foto KMF, Buenos Aires, Julho 2006

Quem viaja para o exterior já deve ter percebido que o mesmo filme lhe persegue desde o seu bairro, em aeroportos, no avião e para aonde quer que você vá. É um pouco isso quando vejo esse link - boxofficemojo.com/intl/ - das bilheterias em todo o mundo. São os mesmos filmes, em todos os lugares, de Gana à Eslovênia, do Recife a Moscou, Rio e Budapeste.

Poucos focos de resitência (ou seja, filmes que ninguém nunca ouviu falar, ou ouvirá mais na vida) vêm exatamente de países cuja cultura cinematográfica oferece resistência (Suécia, Coréia do Sul). É Hollywood. K.M.F

Moscou



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Poder acompanhar a construção lenta e gradual da obra de um autor continua sendo uma das melhores coisas da arte. No caso de Eduardo Coutinho, seu cinema (Cabra Marcado Para Morrer, Santo Forte, Babilônia 2000) firmou-se como o cinema brasileiro do registro, forçosamente rotulado de “documentário”. Recentemente, partiu para ensaios filmados que parecem questionar sua própria herança autoral. Isso nos leva ao curioso fracasso que talvez seja Moscou (Brasil, 2009), seu novo filme.

A possibilidade de Moscou ser uma falha não deve ser entendida como a de um fracasso comum. Não trata-se de um documentário objetivo que nada acrescenta à obra do realizador, ou que resvala para o ‘nada a declarar’ como discurso. Eduardo Coutinho parece estar além disso, como se à procura de uma busca.

Na verdade, se cada filme (ou obra) é uma busca, às vezes é importante registrar a busca, ou a tentativa, como o próprio filme. É um conceito que esse autor já vinha desenvolvendo a cada novo trabalho. Dessa vez, no entanto, ele documenta o processo de uma obra que não acontece.

Durante a projeção de Moscou, Coutinho parece estar nos trazendo uma caixa não com um filme dentro, mas com um paralelepípedo de dez quilos. E nos pede ansioso que olhemos para a pedra que ele achou na sua procura.

Se em Edifício Máster (2003) ele traçava um panorama humano confinado às linhas arquitetônicas de um prédio, em Moscou ele parece despir-se dos personagens para investigar a arquitetura dramática de uma encenação pobre. Vaga sem pistas pela sua pesquisa num filme composto por imagens de um jogral mal filmado em planos estéreis.

Logo, o exercício de Moscou ficará restrito a um jogo puramente intelectual. É a estréia de Coutinho no exercício cerebral monótono e fora de controle, uma lombra bem mais atraente finda a sessão do que ao longo da mesma. Atraente pois um dos nossos grandes autores está livre para experimentar, e solto para tentar se entender, mesmo que a sua busca seja de interesse restrito para os muito poucos que tiverem a paciência.

Isso pode soar como um ponto positivo para alguns, mas certamente deve ser algum tipo de pesadelo momentâneo para esse autor dotado do talento para a clareza inteligente no filmar. Exigir paciência a partir de um exercício brechtiano sem frescor como esse é sensação frustrante na obra de alcance normalmente bem maior que é a obra de Eduardo Coutinho.

A aridez de Moscou para com as figuras que o habitam chama a atenção. No conjunto da obra, o filme é coerente com o anterior, Jogo de Cena (2007), já uma reflexão sobre realismo e drama encenado, usando o teatro não apenas de maneira literal (palco, cortina, coxia), mas no seu sentido mais figurativo (a de uma mentira gerada, como o cinema também é).

Coutinho utiliza mais uma vez o procedimento de atores (Grupo Galpão, de Belo Horizonte) interpretando eles mesmos, e também personagens, nesse caso os de As Três Irmãs, de Anton Checov. O texto de 1901 é um dos mais fascinantes momentos do dramaturgo russo.

A escolha de As Três Irmãs talvez seja sugestiva para conhecedores do trabalho de Coutinho. É sempre um enigma tentar enxergar o homem que faz os filmes, mas o texto de Checov deixa um sabor forte e duradouro de passagem do tempo, da satisfação inalcançável e uma ânsia de ser lembrado num futuro distante. Isso é abraçado com força em determinado momento na voz rouca de Coutinho sumindo em direção ao silêncio.

Já na casa dos 70, Coutinho inspirou em muitos a sensação de estar deixando seu réquiem quando do lançamento de O Fim e o Princípio, em 2005. A sensação volta a rondar Moscou. Naquele outro filme, ele conversava com idosos numa pequena comunidade do interior da Paraíba. Foi um filme de transição e de impasse, apontado por alguns como a repetição de um mesmo procedimento.

Em O Fim e o Princípio, Coutinho parecia flertar com a obra de Lars Von Trier em Dogville (2003). Um mapa emotivo da comunidade sertaneja seguia o mesmo tipo de design do mapa da comunidade no filme do cineasta dinamarquês, e agora é impossível não lembrar em Moscou da encenação de Von Trier via Brecht em Dogville e em Manderlay (2005).

A citação a Von Trier é útil ainda no sentido de trazer Coutinho para um trio de autores (Von Trier com Anticristo, Quentin Tarantino com Bastardos Inglórios) do cinema que acabam de apresentar obras incomuns que podem ser vistas como fracassos especialíssimos que deixam cada um dos autores em encruzilhadas criativas que inspiram mais otimismo do que pessimismo.

No caso de Moscou, há um momento representativo na apresentação dos atores no início do filme. Temos a presença não só do diretor da peça, Enrique Dias, mas do próprio Coutinho, que parece estar substituindo Checov à mesa. Nesse encontro inicial, todos parecem estar indo a algum lugar. No final, suspeita-se que apenas Coutinho foi, saindo ileso de uma experiência que não deu certo, exceto pela pedra que disso resultou.

Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, Agosto 2009

GI Joe - Rise of the Cobra


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Não há muito o que dizer sobre GI Joe - Rise of the Cobra (EUA, 2009), a farofa hi-tech de ação da semana. Trata-se de mais uma adaptação não de um livro, ou de uma peça, nem tampouco de um videogame, mas de um brinquedo. É o segundo brinquedo adaptado em um mês depois de Transformers 2, com o qual GI Joe divide todas as semelhanças. Por brinquedo, nos referimos aos “bonecos de ação” da marca Hasbro, agora transformados num filme milionário com todas as explosões que tem direito.

O diretor é Stephen Sommers, que fez A Múmia e Van Helsing. É triste compará-lo a Michael Bay e ainda ver que Sommers sai por baixo. Por mais que Bay seja uma besta, ainda é possível enxergar ali um autor besta. No caso de Sommers, não há nada que aponte para o trabalho de um ser humano ali por trás. GI Joe passa como uma coisa genérica onde até mesmo os efeitos especiais parecem abaixo de um mínimo esperado. Ou seja, pode ter faltado pulso (algo que Bay notoriamente tem) para exigir o melhor do melhor.

A historinha envolve mais um esquadrão especial de forças americanas, os “Joes”, última cartada do mundo militarizado para situações limite. Esse mundo dos ‘Joes’ é futurista e repleto de tecnologia de guerra, o que dá ao filme um ar de Robocop com James Bond e Exterminador do Futuro. À exceção de Dennis Quaid, como o comandante, o elenco é todo classe B, o que não deve ajudar muito filme tão sem personalidade nas bilheterias.

Eles irão enfrentar mais um maluco que quer destruir o mundo, aliado da nanotecnologia, micro baratinhas que roem o que estiver pela frente. O apetite destrutivo desse tipo de coisa já é conhecido, e envolve a demolição de pontos turísticos internacionais. Dessa vez, sobra para a Torre Eiffel.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, Agosto 2009

Thursday, August 6, 2009

John Hughes Morre aos 59




Acabei de ler na Variety. Um brinde para esse realizador que marcou uma geração que hoje está na casa dos 30-40 a partir de crônicas cheias de momentos verdadeiros sobre ser jovem (nos anos 80). Quem viu The Breakfast Club (1984), Weird Science (1985), Curtindo a Vida Adoidado (1986) e Pretty in Pink (1986, escreveu e produziu) deve saber do que estou falando.

Wednesday, August 5, 2009

Longa de Esmir Filho



Recebi email de uma assessoria internacional de imprensa divulgando o primeiro longa de Esmir Filho (Alguma Coisa Assim, Saliva), e uma série de links para teasers. O filme terá sua estréia mundial em Locarno, semana que vem.

Achei curiosa a forma como o email destaca o fato de o filme não ter nada a ver com o vocabulário usual do cinema brasileiro, onde a palavra chave é favela - "shows a new refreshing side of Brazil, far removed from the caricatures, the favelas, crime and samba music". Deverá gerar uma quantidade interessante de discussão quando chegar ao Brasil.

Friday, July 31, 2009

Sobre Halloween e a Playarte



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Semana passada, estreou Halloween (2007), refilmagem de Rob Zombie do filme de John Carpenter, feito originalmente em 1978. A distribuidora Playarte não exibiu o filme para a imprensa brasileira. Eu escrevi sobre o filme para a Folha de S. Paulo com base no DVD francês do filme (a crítica pode ser lida nesse blog). Horas após a estréia de Halloween nos cinemas brasileiros, no entanto, começaram a surgir relatos na internet de que o filme fora mutilado pela Playarte. Dos 108 minutos originais, a versão lançada no Brasil ficou com 83.

Os cortes mal feitos suprimiram 26 minutos do filme, um desrespeito não apenas aos realizadores mas também ao público, que viu uma versão 'pirateada' do filme passando nos cinemas que cobram ingressos caros. Tentei obter uma posição oficial da Playarte ao longo da semana, sem sucesso, algo também tentado por diversos jornais e sites de cinema do país.

Aos poucos, surgiram revelações. O Diário Oficial da União publicou os planos da distribuidora, que, não querendo lançar um filme com classificação 18 anos (a versão original), submeteu a versão incompleta para atingir a classificação 14 anos, “excluindo conteúdo violento”, e fazendo cenas inteiras sumir do filme.

A história piora com a revelação quinta-feira de que a mesma Playarte já prepara o lançamento de Halloween em DVD, anunciando cinicamente “Versão Estendida SEM CORTES! Inclui Cenas não exibidas no cinema”.

Resta ao público evitar o filme, que entra na sua segunda semana em cartaz. E resta à Playarte, distribuidora tradicional no Brasil, rever suas estratégias de lucro. Num mercado que reclama tanto da pirataria, ver um filme dessa forma, desrespeitado pelo próprio distribuidor, lembra as histórias de cidades do interior de antigamente, onde filmes passavam pela tesoura do padre local.

Aqui, no entanto, não trata-se de crença religiosa, mas a crença burra no dinheiro. Burra porque a manobra pode ter dado lucro, o lucro de um golpe, mas as perdas em imagem da distribuidora no mercado não são poucas.

Além disso, creio que o incidente revela a relação sempre distante entre o Brasil e o cinema de gênero, no caso, o horror, normalmente visto como algo indecifrável e dispensado como 'trash', vulgar e descartável.

À Deriva


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Dia 28 de agosto estréia Os Normais 2 – A Noite Mais Maluca de Todas para confirmar que o atual cenário de cinema brasileiro comercial está dominado por comédias. Se Eu Fosse Você 2, O Divã e A Mulher Invisível computam dez milhões de espectadores esse ano, indicação mercadológica de que esse tipo de filme é o que há no nosso mercado. Com isso em mente, não deixa de ser um tipo de alívio ver algo como À Deriva (Brasil, 2009) tentando achar espaço.

É o terceiro longa do realizador pernambucano radicado em São Paulo Heitor Dhália, que antes fez Nina (2004) e O Cheiro do Ralo (2006). O filme teve sua estréia mundial na mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes, há dois meses, fato muito destacado pela campanha de divulgação do filme.

Dado o cenário atual, À Deriva chega hoje aos cinemas do Brasil como produto diferenciado. Desta vez, não temos um humor de comercial brasileiro de cerveja, adultos comportando-se como crianças de 12 anos e uma linguagem de TV para um público que procura sintonizar a Globo nas salas de cine.

O filme de Dhália é um relato que cheira a algo claramente pessoal e investiga relações familiares do ponto de vista de uma adolescente, Filipa (Laura Neiva). Ela observa de camarote a dissolução do casamento dos pais (Débora Bloch e Vincent Cassel) durante uma temporada de férias numa praia paraíso (Búzios, RJ), filmada nos tons meticulosamente dourados do que um certo tipo de cinema entende como sendo lembranças distantes. O filme parece se passar discretamente nos anos 80.

Neiva, que está em praticamente todas as cenas, é a primeira pessoa do filme, uma adulta em formação que irá aprender algumas coisas novas sobre o funcionamento das pessoas no mundo dos crescidos. Percebe coisas que seus irmãos mais novos nem imaginam, especialmente a movimentação amorosa do seu pai em relação a outras mulheres. Não percebe, no entanto, o que acontece com a mãe.

O francês Cassel (Irreversível, 13 Homens e um Novo Segredo) parece tentar honrar aqui sua admiração pessoal pelo Brasil, para onde vem com freqüência. Fala português e ocupa um personagem que soa como se não tivesse sido escrito originalmente para ser francês, como se Cassel tivesse aceitado o papel em cima da hora. De qualquer forma, o ator é sempre presença.

Bloch traz credibilidade dramática para o filme como a mãe instável e alcoólatra. Se juntarmos o personagem principal da filha à força insensata da mãe, vemos que À Deriva é uma obra dominada pela força sempre assustadora das mulheres.

O filme, de certa forma, é um gol para Dhalia, que parecia concentrar-se na direção de arte vistosa, figurinos berrantes e atitudes ‘mudernas’ nos seus dois filmes anteriores, mas que aqui traz o elemento humano para a frente das suas preocupações. Usa, de qualquer forma, uma série de clichês que fazem a história avançar.

Esse rito de passagem, por exemplo, envolve a perda da virgindade como barreira transponível rumo à maturidade, e eis que esse rito é marcado pelo cintilar de águas douradas sob o brilho energético do sol de Búzios. A locação é uma escolha que dá ao filme uma sensação constante de estarmos presos dentro de uma série de cartões postais. O tom geral é rosa choque.

Na verdade, é curioso observar a movimentação de alguns jovens realizadores e a pressão que existe no sentido de fazerem produtos de mercado para o cinema, seja lá o que significa isso. Na verdade, suspeitamos que isso envolve pegar uma visão pessoal totalmente realizável como obra honesta, pura e simples e maquiá-la com os mecanismos do bom gosto tido como médio. Teme-se que, no final das contas, um projeto como esse não agrade totalmente a nenhuma das partes, seja o espectador à procura de um filme forte e autoral, ou ao grande público, adestrado para rir.

À Deriva é uma produção da Focus Features (Universal) e O2 Filmes, do Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Ensaio Sobre a cegueira), claramente a produtora de publicidade e cinema mais bem sucedida do Brasil, possivelmente da América Latina. Se Meirelles é um realizador seguro que tem o talento nato de fazer filmes para o mundo, percebe-se que sua estrutura termina atraindo e/ou influenciando outros realizadores a atingir um certo “padrão internacional” que, na pior das hipóteses, é trazido de forma calculada.

Se isso é óbvio em projetos estritamente comerciais como Viva Voz (2004), de Paulo Morelli, esse tipo de pressão termina se evidenciando com certo pesar quando o filme proposto vem de uma motivação que aparenta ser pessoal, moldada finalmente num produto que quer ser comercial.

De maneira semelhante à sentida em relação ao primeiro longa de Philipe Barcinski, Não Por Acaso (2007), outra produção da O2, À Deriva, mais bem sucedido como filme, também sugere algo de pessoal, mas acrescida de mecanismos que sugerem uma embalagem industrial. Além da paisagem e fotografia Polaroid, a música de Antônio Pinto, uns pianinhos que emulam Yann Tiersen (Amélie Poulain) se intrometem numa ação humana que, de outra forma, é de interesse.

De qualquer forma, fica a curiosidade de observar como o mercado irá receber À Deriva, que, no geral, está acima do que o recente cinema brasileiro de ambições comerciais tem feito.

Filme visto na Sala Debussy, Cannes, Maio 2009

Desejo e Perigo


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Dramas humanos de amor em tempos de guerra parecem, em geral, divididos em dois tipos. No primeiro, duas pessoas são separadas pela morte de uma delas, vide o popular O Suplício de uma Saudade (1954), ou a obra prima russa Quando Voam as Cegonhas (1959). O segundo tipo mostra uma relação de amor engolida por eventos bem maiores e poderosos, exemplo clássico de Casablanca (1941) ou do recente filme de Ang Lee, Desejo e Perigo (Se, Jie, EUA/China/Taiwan/Hong Kong, 2007), uma história envolvente cujo sabor frio da sua beleza permanece com o espectador bem depois de finda a sessão.

Desejo e Perigo se passa na Shanghai de 1942, mesmo cenário e período do interessante fracasso que foi O Império do Sol (1987), de Steven Spielberg, a história de um garoto perdido. No filme de Lee (taiwanês de origem, radicado nos EUA), temos uma movimentação política por parte de estudantes chineses que embarcam numa ação patriótica que visa matar Yee (Tony Leung), oficial chinês que trabalha para os japoneses durante a dramática ocupação da China.

Um dos estudantes perdeu a família pelas mãos severas de Yee, um homem frio que executa seu trabalho de maneira brutal. A intenção do grupo, à frente de encenações universitárias bem sucedidas com toques claramente ufanistas, é oferecer uma isca sexual para Yee.

A isca será a bela Mak Tai Tai (Wei Tang), atriz de talento capaz de emocionar centenas no palco, e que terá de contracenar sexualmente com Yee para conquistar sua confiança. Mais à frente, irá colocá-lo numa armadilha. É o clássico personagem da viúva negra, ou da espiã Mata Hari, algo revisto recentemente no também muito bom A Espiã (2006), de Paul Verhoeven, onde uma judia é enviada disfarçada para conquistar a cama de um oficial nazista, na Holanda ocupada.

Se no filme holandês temos uma empolgante aventura sobre a ética da guerra, no filme de Lee o tom é ainda mais sombrio. Ele vai fundo na relação física entre a isca e sua presa, filmando o sexo de maneira honesta e direta. Desejo e Perigo é um daqueles filmes raros que comporiam lista de obras que ajudam a construir a imagem filmada do coito no cinema, algo que permanece um tabu em 2009.

A presença de Leung reforça ainda mais paralelos possíveis nas lembranças do espectador com Amor à Flor da Pele (2000), de Wong Kar Wai, onde o sexo constante entre um casal estava no ar, e não na tela. No filme de Lee, no entanto, o amor e o romantismo, desenvolvido a partir de uma relação carnal inicialmente violenta, passa para a discreta delicadeza rumo a uma conclusão que volta a ser brutal, como a própria guerra. Mistura sentimentos humanos como traição, decepção e a violência absoluta do poder.

É um desses filmes clássicos, bem filmados. Uma seqüência importante (e muito violenta) parece não apenas servir de informação para o espectador sobre as medidas extremas influenciadas por uma Guerra, mas ainda evoca Hitchcock e a sua afirmação de que “matar um ser humano é algo trabalhoso e que dura muito, mas muito tempo”.

Não só o sexo está perfeitamente iluminado, mas partidas de majongue e cenas de rua são show. O roteiro de Lee, James Schamus e Hui Ling Wang constrói firmemente personagens e situações humanas, dando espaço ainda para que você preencha espaços. Instigante.

Filme visto no Cine Rosa e Silva, Recife, Julho 2009

Monday, July 27, 2009

Halloween (Rob Zombie)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


É curioso que Halloween (1978), de John Carpenter, autor que filmou a aflição com tanta elegância, tenha estabelecido a base para o moderno filme de terror, o “slasher”, gênero marcado por um filmar tão feio. Mais curioso é ver que depois de dezenas de cópias e mutações, Halloween, remake oficial dirigido por Rob Zombie, uma antítese do original, ainda seja de interesse.

Um caso raro de filme dividido em dois, na narrativa e na qualidade, o novo Halloween parece funcionar no todo como bom produto de gênero via toque pessoal do seu autor.

O mito do bicho papão sugerido por Carpenter tinha a forma de um assassino mascarado e mudo que não desistia, faca em punho, sem noção ou explicação. Matava numa coreografia sublime de travellings em Panavision sob uma música eletrônica primitiva que ninguém esquece, criação do próprio Carpenter.

Se o original investiu tempo e atenção nas vítimas aterrorizadas pelo vulto, na versão de Zombie o carinho é todo depositado no bicho papão, sem paciência ou interesse para as adolescentes que gritam. Teoricamente, a idéia é infeliz, pois tira-se o mistério natural do mal puro e simples, o equivalente a tentar explicar o medo do escuro.

Na prática, no entanto, Zombie faz um filme interessante. Ex-vocalista da banda White Zombie, ele havia mostrado sua sensiblidade heavy metal para o cinema nos seus dois primeiros filmes, A Casa dos Mil Corpos e Rejeitados Pelo Diabo. Com Halloween, confirma que ‘família’ é sua palavra chave.

Seu interesse pelo psicopata Michael Myers é não apenas a melhor coisa do filme, como sugere uma refilmagem de Carrie a Estranha (1976), de Brian de Palma, e não tanto do filme de Carpenter. Por baixo da sordidez estridente das relações, há um cuidado pelo menino sempre mascarado com sérios problemas na escola e em casa. É mal tratado por todos, mas amado pela mãe, pelo psiquiatra (Malcolm Macdowell) e pelo próprio cineasta. A utilização de Love Hurts (o amor dói), do Nazareth, soa bem no filme em vários sentidos e a explosão de violência perturba.

É uma primeira parte que Zombie quer que seja só dele, já que na segunda metade, ainda dotada de imagens potentes no gênero, irá apenas cumprir cláusulas contratuais que dão ao filme o tipo de dormência que mutações desse tipo geralmente têm. No entanto, Zombie consegue fechar seu horror heavy metal com o que Carpenter sempre teve em mente: uma imagem de puro cinema.

ATENÇÃO: esse texto publicado na Folha de S. Paulo ontem foi feito com base no filme visto no DVD francês de Halloween, de Rob Zombie. Eu revi o filme há duas semanas, no Recife. No sábado, um dia após a sua estréia nos cinemas brasileiros, saíram comentários na comnunidade do CinemaScópio do Orkut (a partir de nota no http://mestreinfernauta.blogspot.com/2009/07/michael-myers-vs-playarte.html) informando que o filme havia sido cortado no Brasil e ficado com 86 minutos, o que explica a baixa classificação 14 anos. A versão francesa é classificada 16 anos e tem 109 minutos

Sunday, July 26, 2009

CinemaScópio no Twitter

Olá, para quem segue, http://twitter.com/cinemascopio.

Saturday, July 25, 2009

Inimigos Públicos



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

À certa altura de Inimigos Públicos (Public Enemies, EUA, 2009), o personagem de Johnny Depp vai ao cinema ver Vencido Pela Lei (Manhattan Melodrama, 1934), com Clark Gable. É mais ou menos aí que confirma-se a suspeita de que estamos diante de uma espécie de Gable dessa geração, fazendo um "gangster picture" retrô em 2009. Depp, inicialmente um rebelde em filmes fora do circuito, é hoje o grande astro de Hollywood, seu rosto uma atração à parte e aqui explorado sem grandes convicções pelo interessante autor que é Michael Mann. Nessa nova obra de Mann, ele interpreta o gangster da vida real John Dillinger num filme que me pareceu incerto sobre o que quer ser e mostrar.

O tratamento dado a Dillinger via Depp é o de um super astro, sempre impecavelmente vestido e jogando com as palavras como nos filmes de outrora, especialmente quando parte para a conquista de uma mulher, Billie Frechette (Marion Cotillard, de Piaf). Inicialmente, é uma visão romântica e cheia de glamour da vida no crime, ajudada por um homem que, em situações graves, sempre tentava pensar positivo.

Estaria Mann, com suas câmeras digitais de alta definição, tentando nos dar uma releitura super moderna do clássico “gangster film”, como De Palma fez 22 anos atrás em Os Intocáveis? O choque entre a imagem digital de câmeras na mão e o já conhecido (e incrível) sabor reconstituído de uma época (os anos 30) parece apontar para isso já na poderosa seqüência de abertura.

No mesmo período que viu Lampião e Maria Bonita ganhar fama e notoriedade no interior do Brasil, Dillinger fez o mesmo no chamado meio-oeste americano. Esse criminoso teve trajetória semelhante, um ladrão (de bancos) carismático que ganhou fama de Robin Hood e que mexeu com os brios da ‘volante’ americana (um FBI ainda nascendo sob o comando de J Edgar Hoover). Também terminou morto numa emboscada da polícia, que já não agüentava mais ser desmoralizada.

O interesse de Mann pelo personagem certamente funciona como mais uma peça da obra coerente desse diretor, fascinado com o crime dos homens contra os homens, e a relação que eles têm com as suas mulheres. Cada homem também parece ter o seu duplo, geralmente um que é seguidor da lei, o outro totalmente fora da lei.

Dessa vez, essa construção paralela não parece funcionar. Se Dillinger via Depp é o centro do filme, o seu perseguidor implacável só existe no desejo claro de Cristian Bale ter mais tempo para desenvolver o agente Melvin Purvis. A real importância de Purvis para o filme o espectador só virá descobrir num letreiro final que contrapõe os destinos reais dos dois homens. Durante a projeção, ele é apenas o que está tentando pegar Dillinger em cenas curtas, pouco aparece e fala menos ainda.

Sobre realismo, Inimigos Públicos também confunde, estacionando num meio do caminho entre o romantismo cheio de glamour da vida bandida e, na segunda metade, na dureza que essa mesma vida é capaz de trazer para seus sócios. É como se na dúvida entre verdade e lenda, Mann tivesse escolhido as duas, minando cada uma em proporções iguais.

Finalmente, a sensação de que todos esses elementos híbridos podem ter afetado Depp, o astro. Sua presença é forte sempre e o cara está super bem vestido, mas não parece conseguir nos apresentar o homem por trás do mito. É um gangster não muito desenvolvido de um clássico filme de gangster.

Curioso, certamente, mas para mais nuance, contradição ou pura empolgação, melhor lembrar os dois marcos feitos em 1967, Bonnie Clyde (1967), de Arthur Penn, e O Massacre de Chicago (The St. Valentine's Day Massacre), de Roger Corman, ou o filme de De Palma.

Filme visto na Sala 1 do UCI Boa Viagem, Recife, onde a projeção agora está clara e nítida.

Há Tanto Tempo Que Te Amo


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A narração de um drama humano nos livros ou nos filmes funciona normalmente a partir da liberação gradual de informação e da capacidade que se tem de observar as pessoas, os personagens. Não é raro ver que dramas humanos muitas vezes ganham contornos mais próximos do espetáculo das emoções, algo que pode ser identificado como o melodrama. No filme francês Há Tanto Tempo Que Te Amo (Il y a Longtemps que je T'aime, 2008) temos um exemplo interessante de como a narrativa realista flerta secretamente com o melô.

Talvez pelo fato de a escola aqui ser a do cinema francês, tudo é muito sóbrio e bem observado, sem julgamentos. Alguns espectadores poderão mentalizar o mesmo tipo de filme caso tivesse sido feito por Hollywood, onde cada cena parece, na verdade, esconder objetivos outros, e onde há um julgamento moral constante a cada passo tomado por cada personagem. Freqüente também a sensação de que filmes não têm a coragem de apresentar traços humanos como eles são, algo bem mais raro nas produções feitas longe do mercado americano.

Vejam, por exemplo, a personagem principal de Há Tanto Tempo Que Te Amo, um desafio para o espectador. Temos uma mulher de quarenta e poucos anos (Kristin Scott Thomas, que é inglesa, falando bom francês). Ela sai da prisão, onde ficou 15 anos cumprindo pena por algo terrível que logo o filme irá revelar.

Sem nada na vida e querendo recomeçar do zero, ela recebe abrigo na casa da sua irmã caçula, casada e com duas filhas adotivas. O ambiente familiar também inclui a figura do sogro da irmã, que está sempre no seu canto, calado, mas de bom humor, lendo.

A interação entre ela e a família gera quantidade curiosa de interesse e tensão. O drama humano surge da oportunidade que é dada a partir do respeito pelo outro e pelo amor ao próximo. Scott Thomas esbalda-se como atriz com o tipo de personagem raro, talvez inexistente na grande indústria, o de uma mulher destroçada e que tenta se levantar.

O tom inicialmente aéreo dessa mulher vai abrindo espaço para pequenas conquistas pessoais, boa parte delas trazidas pela confiança da sua irmã e cunhado, e da inocência das crianças. A personagem exercita sua sexualidade sem culpas e logo o filme nos conquista pela humanidade da história que está sendo narrada.

No entanto, algo ocorre. Há uma segunda revelação, espécie de dinamite emocional que pega boa parte da platéia em cheio. A nova informação é o impacto perfeito para finalizar um melodrama, mas, de fato, parece enfraquecer a linda história de compreensão que estava sendo narrada antes. Temos agora um motivo redentor, catarse certa na sala de cinema, mas que nos parece um efeito especial dramático típico do melô clássico. De certa forma, e com todo respeito ao melodrama, uma pena.

Filme visto no Cinemaxx 6, Festival de Berlim, Fevereiro 2008

Monday, July 20, 2009

Homem / Lua




Nasa restaurou imagens originais. http://www.nasa.gov/multimedia/hd/apollo11.html.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Historicamente, a chegada do Homem à Lua foi o resultado da Guerra Fria, onde americanos e soviéticos entraram na chamada ‘corrida espacial’ já nos anos 50. Em termos práticos, deu-se uma espécie de olimpíada da ciência entre duas escolas rivais, e os americanos, que chamavam seus homens de astronautas, ganharam a prova final, a lua, dos soviéticos, que chamavam seus heróis de cosmonautas. No entanto, foi o cinema, de certa forma, que venceu a corrida, pois em 20 de julho de 1969, 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, já estava em cartaz em todo o mundo com praticamente um ano de vantagem.

Dar algum tipo de vitória ao cinema, considerando o incrível feito técnico e político de Washington e da agência espacial americana, a Nasa, e todo o investimento dos melhores cérebros do poderio comunista, não é exatamente um exagero. O cinema, como reflexo do mundo e do ser humano, nos oferece um universo paralelo que muito tem de verdade, especialmente no âmbito da chamada ‘ficção científica’, um termo mal tratado pela cultura pop, em geral.

A ficção científica indica, literalmente, a hipótese desenvolvida em cima de uma base factual, científica. Vale observar que muito do que se produz e que se consome no cinema é rotulado sem grandes cuidados de ‘ficção científica’ quando, na verdade, melhor seria o termo ‘fantasia’. Ou seja, 2001 – Uma Odisséia no Espaço seria ficção científica, enquanto Guerra Nas Estrelas (um exemplo fácil), uma ‘fantasia’, ou ‘fantasia espacial’.

Uma suposta vitória do filme de Stanley Kubrick, que foi lançado em abril de 1968, pode ser explicada. A lua sempre teve participações especiais nas imagens do cinema, ao longo do último século, seja pura e simplesmente pela sua carga mística e estética, ou como o satélite natural da Terra.

No primeiro caso, a lua pode ser elemento catalisador do romance, da sorte e do azar, ou da sensualidade, da fecundidade das mulheres, das próprias mulheres. São elementos usados com freqüência constante no cinema, do filme de lobisomem (Um Lobisomem Americano em Londres talvez seja o melhor) a uma cena simples onde James Stewart promete a lua a Donna Reed em A Felicidade Não se Compra.

A lua como objetivo de conquista do homem, no entanto, é algo menos freqüente, e constitui uma série de exemplos curiosos sobre como o cinema reflete as ambições do homem e de suas sociedades, algo que atingiria uma espécie de clímax com o filme de Kubrick, nos anos 60, às véspera da real conquista da lua.

É uma idéia tão presente no ser humano e no cinema que lá está ela na primeiríssima vinheta da MTV, levada ao ar em 1982, num filme recente e próximo como o pernambucano Muro (2008), de Tião, ou no cinema ancestral de Georges Méliès, que conquistou a lua já em 1902, quando fez Le Voyage Dans La Lune.

Esse filme incrível de 21 minutos (numa época em que filmes duravam não mais do que dois minutos), a nave espacial com a forma de uma bala grande é disparada de um canhão em Paris. A lua tem os traços reconhecíveis de um rosto humano que acabara de ser atingido por uma polpuda torta de marshmallow. E esse rosto leva a nave bem no olho direito, a versão de Méliès para uma hipotética aterrissagem lunar.

Na lua, existiriam habitantes, os selenitas, que nos passam a suspeita através de sua aparência de que Méliès os imaginava como nativos africanos de alguma terra distante, claro reflexo da política colonialista (e racista) dos europeus na virada do século 19 para o 20. Esses nativos lunares também têm uma particularidade: eles explodem e viram uma nuvem de fumaça quando atacados.

A base de Meliès para o filme foi os escritos de dois autores marcantes que enxergavam o jeito de como as coisas viriam a ser no futuro: o francês Jules Verne e o inglês HG Wells. Escreveram certo sobre os avanços do homem pelas linhas tortas da fantasia.

Uma outra história intrigante é a do filme alemão de ficção científica Die Frau im Mond (A Mulher na Lua, 1928), de Fritz Lang. Não é um bom Fritz Lang, mas a sua atenção para o detalhe (seu filme anterior foi o clássico Metropolis) envolvia mostrar em detalhes uma plataforma de lançamento do foguete que não apenas assustou o serviço de inteligência britânico, como levou os nazistas a destruir a maquete usada no filme.

Ou seja, um proto-caso de armas de destruição em massa que se repete na história humana. Realista demais, o filme terminou entregando segredos dos foguetes V1 e V2 que uma década depois aterrorizariam Londres nas campanhas de bombardeio pelos nazistas.

Ao longo das décadas, o cinema tentou conquistar a lua diversas vezes, mas boa parte dos resultados não é memorável. Antes de 2001, a ficção científica era popular, mas raramente levada a sério, justamente por talvez parecer fantasiosa, os efeitos especiais ainda incapazes de convencer, problema menor do que as tentativas de agradar a um público que talvez rejeitasse a realidade científica de tal empreitada.

Pouca gente deve saber da existência de Destination Moon (1950), por exemplo, produção de George Pal que, historicamente, diz pela primeira vez, e com todas as letras naquele pós guerra, que “a lua tem valor militar estratégico, e que se os EUA não chegarem lá primeiro, outros chegarão!”. São filmes que, talvez precariamente, expressaram ansiedades de suas épocas, mas que têm um valor pelo menos histórico, o que não é pouco.

No caso de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick adaptou a obra do inglês Arthur C. Clarke num momento absolutamente crucial. A motivação para o filme veio numa década que via a corrida espacial levar o homem, fosse ele americano ou soviético, cada vez mais longe. De uma certa forma, os desenvolvimentos reais dessa corrida alimentaram Kubrick, um pesquisador nato e um artista perfeccionista, a também ir muito longe.

Tão longe que 2001 não é, nem nunca foi, um filme sobre a conquista da lua, que na sua trama esparsa é vista como um assunto sacramentado, última parada da civilização humana em direção à descoberta de um universo infinito e misterioso.

O impacto de 2001 à época pode ser medido pela capacidade que o filme ainda tem de impressionar uma platéia em 2009, 41 anos depois. Kubrick fez seu filme passando a estranha sensação de ter entrado em órbita com atores e equipe, seus detalhes e concepção cheiram a realidade, e isso vai do silêncio do espaço às roupas de aeromoças espaciais. Mais potente ainda é a sensação trazida pelo filme de que o homem é pequeno demais perante os mistérios do universo, ignorante demais diante de civilizações maiores e melhores, e que muito ainda será explicado.

Talvez 2001 tenha contribuído para embaralhar a percepção de muita gente que viu o homem pisar na lua numa TV, ao vivo, em julho de 1969. Não são poucos os que duvidam de que tal fato realmente ocorreu, sentimento satirizado de forma inteligente num falso documentário francês de 2002 chamado Operation Lune.

O filme de 52 minutos feito para a rede franco-germânica Arte “defende” que a chegada do Homem à Lua foi uma mentira arquitetada pela CIA e dirigida por Stanley Kubrick num estúdio. A motivação por trás disso seria o medo que Richard Nixon teria, então presidente dos EUA, e em pânico com a perda do controle na Guerra do Vietnã, de a missão espacial dar errado. Com a direção de Kubrick, a conquista da lua seria um sucesso garantido.

Man on Wire (O Equilibrista)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma discussão possível em torno da morte prematura de Michael Jackson é a questão do talento. Numa sociedade moderna onde todos aparecem, com ou, preferivelmente, sem talento, a idéia de alguém ser clara e evidentemente agraciado com uma inclinação nata para a arte e a expressão pode ser realmente fascinante. A arte não apenas como uma tentativa, mas como uma flecha certeira que impacta muitos. Se Jackson é um caso claro disso, o francês Philippe Petit seria um outro. Seu feito mais incrível foi um atentado artístico contra as Torres do World Trade Center no ano de 1974, tema do documentário O Equilibrista (Man on Wire, Ing, 2008).

O filme do inglês James Marsh apresenta Petit como o artista original que honra o termo, ou seja, alguém que provoca, desafia e impacta. Misto de mímico e equilibrista, Petit desenvolveu desejos incontroláveis de conquistar espaços utilizando cabos de aço, uma longa vara de equilíbrio e um desprezo inacreditável não apenas pelas leis sociais, mas principalmente pelas que regem a gravidade.

E foi assim que Petit, em agosto de 1974, atravessou oito vezes o espaço que separava a torre sul da torre norte, achando ainda tempo e energia para deitar no cabo de aço no meio do caminho, a uma altura de mais de 400 metros.

Diz a lenda do filme que esse homem baixinho estava num consultório de dentista no final dos anos 60 quando abriu uma revista e viu fotos do que viria a ser o canteiro de obras do World Trade Center, em Nova York. A imagem o encantou no sentido de apropriar-se dela. É o desejo do artista nato, que ficará obcecado para que sua visão seja alcançada, mesmo que a obra exija uma operação de guerrilha típica de um crime bem planejado, ou talvez o de um ataque terrorista.

É essencial deixar claro que esse é um filme inteligente. Em nenhum momento da narrativa eletrizante de 94 minutos de duração há qualquer menção aos eventos históricos do 11 de setembro de 2001. Marsh sabe que ao vermos as duas torres, seja em imagens da sua construção, ou da atividade formigueira comum nos dois prédios já em funcionamento, nossa bagagem cultural e histórica dará o realce chocante em relação ao fim dos dois arranha céus que todos nós conhecemos.

O paralelo entre um ataque artístico e um ataque de terror também dá ao filme a dimensão real da visão de Petit como artista. Amparado por uma estrutura enxuta que irá viabilizar a façanha (colaboradores, equipamentos, disfarces, conversa mole, coragem), o filme não deixa claro como, nem de onde, veio o dinheiro para a operação.

De qualquer forma, Marsh constrói O Equlibrista como um thriller, desafiando as leis do documentário com reconstituições dramatizadas que geram suspense mesmo sabendo que a conclusão foi feliz.

No centro de tudo, Petit, o artista, cuja arte foi capaz de emocionar o policial enviado para prendê-lo no terraço do WTC, o juiz que o julgou pelo crime (a pena estipulada revela claramente admiração da autoridade pelo artista julgado), as centenas de pessoas que olharam para cima naquele dia, o mundo como um todo. Não é normal ver documentários sobre o mito real do artista absoluto, ou de um super homem.

Filme visto em DVD (francês), Recife, Fevereiro 2009

Tuesday, July 14, 2009

Harry Potter 6


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Não deixa de ser um luxo ter esse mimo industrial que é a série Harry Potter batendo na porta, em média, a cada ano e meio. As tempestades de luz do bruxo inglês e amigos têm trazido um certo encantamento que, em alguns dos seus melhores momentos, supera qualquer sensação de estarmos diante de um enlatado. Se a palavra “magia” é um clichê sofrível quando aplicado ao cinema, resta sugerir que a série é um sucesso não apenas comercial, mas também de realização. Para ilustrar isso, vejam o bom e bem feito Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half Blood Prince, EUA/Ing, 2009), sexto filme da série que chegou aos cinemas de todo o mundo em sessões especiais à zero hora de hoje.

Potter é um tipo de luxo particularmente se levarmos em consideração que os sucessos comuns das temporadas de férias podem ser lixos sem fim como Transformers 2. Desde 2001 que os filmes bancados pela Warner Bros, a partir dos escritos da escocesa JK Rowling, parecem estimular a leitura junto aos muito jovens, um feito e tanto.

O embate entre a palavra escrita e a dimensão acrescida das imagens de cinema sugere uma relação cada vez mais rara hoje em dia, e é positiva. Se há uma capa espessa de magia nas histórias, a base delas é realista, nas relações de amizade, escolhas éticas e o mundo da escola, com um tom claramente britânico para efeito extra de curiosidade.

Do ponto de vista do mercado, os cinco primeiros filmes arrecadaram uma receita de 4,47 bilhões de dólares. Nenhuma outra série na história do cinema deu tanto dinheiro, deixando para trás os 22 episódios de James Bond somados, ou os seis capítulos de Guerra Nas Estrelas.

CRESCIDOS –Harry Potter e o Enigma do Príncipe nos lembra que o crescimento natural dos atores (ou dos personagens) foi registrado filme a filme. É algo raro no cinema e que lembra o caso também particular dos cinco filmes de François Truffaut com o menino/homem Antoine Doinel.

Espanta aqui o quanto “os meninos cresceram”, e termos visto a transformação daquelas crianças em adultos ao longo dos anos é certamente a mágica mais verdadeira de toda a série.

Isso é muito bem aproveitado pelo filme do diretor David Yates, profissional capaz oriundo da TV inglesa e que já havia dirigido o Potter anterior, A Ordem do Fênix. O roteiro de Steve Kloves, um desses trabalhos hercúleos e funcionais que Hollywood paga a peso de ouro, equilibra duas partes bem distintas e que, em alguns pontos, sugerem água e vinho, um pouco como se dois filmes diferentes corressem paralelos.

Numa banda, que dá ao filme excelente sustentação, temos Harry (Daniel Radcliffe), Ron (Rupert Grint), Hermione (Emma Watson), seus amigos e desafetos na escola Hogwarts lidando com as primeiras complicações do amor. Entre bruxos, o amor talvez seja até mais complicado.

Poções mágicas variadas entram para atiçar e/ou podar sentimentos, o que sugere algo não muito distante de uma pequena galeria de drogas ilícitas que talvez nos ajudem a enxergar o tom mais realista desse capítulo e seu ambiente escolar.

Se ela já havia chamado atenção no filme anterior, a loirinha de sotaque irlandês Luna Lovegood (Evanna Lynch) continua roubando cenas. Ela é engraçada e parece resumir bem aquela menina de olhar distinto e humor incomum que toda sala de aula parece ter.

A outra metade do filme, cheia de mistério e pequenos terrores, reside na relação aluno/professor de Potter e Dumbledore (Michael Gambon). A curiosidade quase mórbida de Potter para desvendar mistérios no passado do grande vilão Voldemort é administrada pelo mestre com cuidado e senso de responsabilidade para o pupilo.

As influências do mal surtem efeito não apenas na escola, num aluno com inclinação para o mal e num professor com a mesma vocação, mas também na realidade de Londres. A cidade aparece em destaque, desta vez, o que apenas aumenta o nível de interesse pelo todo. Já constrói-se desde agora o confronto final entre Potter e as forças de Voldemort para os dois capítulos que serão lançados em 2010 e 2011.

Esse realce do fantástico com a realidade tem feito um bem à série, que começou com tom claramente infantil, ciente demais da sua “magia”, creio que no mau sentido. Entrou nos eixos e ficou realmente interessante em O Prisioneiro de Azkhaban (2004), dirigido pelo mexicano Alfonso Cuaron.

É uma saga onde um poderoso mago pergunta onde fica o banheiro, onde meninas com corações partidos ganham andorinhas voando ao redor da cabeça e o espectador ainda tem a oportunidade de ver um fiapo de memória sendo pinçado da cabeça de um homem, lembranças guardadas em jarros...

Construído a partir de personagens sempre interessantes com praticamente todos os recursos humanos do teatro inglês que Hollywood pode comprar, Jim Broadbent (Moulin Rouge) é o destaque desse filme como o Professor Horace Slughorn. Sua entrada no filme é difícil de bater como conceito e design, revelando o grau de esmero aplicado ao todo.

PROJEÇÃO - Eu vi o filme na sala 1 do Shopping Recife, em Boa Viagem, Recife, onde a projeção escura, lente manchada (lado direito) e som apenas OK não valem os 16R$ do ingresso, rendendo uma sessão literalmente apagada. Se está no Recife, evite essa sala. Tente ver o filme no Plaza de Casa Forte, a melhor projeção da cidade hoje, ou na 7 THX do Box. As empresas de exibição precisam zelar pela projeção nessa era de TV e Blurays de alta definição, pois, mesmo que o verdadeiro dinheiro venha da pipoca, o cinema sem imagem e som, não existe.

Monday, July 13, 2009

Kes (DVD)


por Kleber Mendonça Filho
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Bernard Shaw escreveu em Pigmalião que “é impossível para um inglês abrir a boca sem ser odiado ou desprezado por outro inglês”. A reflexão talvez seja uma base reveladora para o cinema de Ken Loach, que geralmente ocupa o escaninho do “realismo social” tão usado pela crítica. Seus melhores filmes parecem interessados não só em observar a realidade, mas em escutar uma cultura (a britânica) que se auto examina pelo sotaque.

Caso específico de Kes (1969), o mais belo filme da longa carreira de Loach.
Kes é uma jóia reconhecida do cinema inglês, feito no final de uma década que viu mudanças na imagem filmada dos britânicos. A idéia de “clássico inglês” é normalmente associada à pompa de um David Lean e um Lawrence da Arábia (1962), ou às adaptações recentes de Merchant & Ivory, como Retorno a Howard’s End (1993). São claramente versões mais palatáveis da Grã-Bretanha para o mercado.

Nesses filmes, personagens do povo eram “típicos” e/ou coadjuvantes, peças do conflito de classes em adaptações de Charles Dickens, ou glamourizados como o cockney sedutor de Michael Caine, em Alfie.

Trabalhando na TV britânica nos anos 60, Loach já comungava da filial inglesa da Nouvelle Vague, a chamada New Wave britânica, de autores como Tony Richardson, John Schlesinger e Karel Reisz. Isso o levou naturalmente a um filme como Kes.

O tratamento dado à história do menino Billy (David Braley), morador de uma comunidade mineira de Yorkshire, parece sugerir Kes como o perfeito duplo inglês do francês Os Incompreendidos, que François Truffaut filmou dez anos antes. Os filmes se completam como frutos honestos de suas respectivas culturas. Ambos contém imagens milagrosas da juventude que vão além da simples dramatização. Os dois abordam com força o enterro da infância.

Billy, com o ar de um esquilo assustado, parece mais à vontade dois graus acima da realidade. Isso o ajuda a lidar com professores neuróticos, o irmão cruel e a distância dos colegas que não entendem como ele funciona. Seu maior interesse está em Kes, o falcão que ele conquistou com astúcia e uma curiosidade esclarecida por livros.

O perigo é sugerir que Kes é um filme piegas sobre a amizade de uma criança com um animalzinho, o que não é. Composto por uma série de momentos que não têm preço (o jogo de futebol, o castigo dos meninos, a apresentação na aula de inglês) filmados em locação, percebe-se que é a fala espessa de toda uma classe social que parece dar a Loach o seu prazer como autor, e a autenticidade do seu relato. Billy e o seu ambiente social se bastam, e essa identidade está num falar que será explorado de forma radical ao longo de toda a filmografia do diretor.

Kes passou há 40 anos na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Dois meses atrás, em Cannes, Loach mostrou seu filme mais recente, Looking For Eric, crônica bem humorada sobre a relação entre um torcedor fanático e seu ídolo francês, Eric Cantona. O filme novo sugere o quanto Loach, 72 anos, deve estar de bem com a vida, e confirma o seu interesse pelo falar do inglês popular, sem esquecer da bola de futebol.

Filme revisto em DVD da Lume Filmes, em lançamento.

A Proposta


por Kleber Mendonça Filho
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Por pura ironia, um dos aspectos mais interessantes da vida – a união gradual e amorosa entre duas pessoas – tem gerado alguns dos produtos mais horrorosos do chamado entretenimento de cinema. No Brasil, a “comédia romântica imbecil” já virou uma marca e uma praga da produção nacional, tiro certo nas bilheterias com empurrão da matriz desses filmes e novelas, a Rede Globo de Televisão. Em Hollywood, as ‘romcoms’ também são garantia de sucesso, com ingredientes mecânicos notáveis aplicados a um tema humano que seria normalmente orgânico e natural. A Proposta (The Proposal, 2009) é o exemplo mais recente.

É curioso que os primeiros 20 minutos do filme sejam promissores, com uma situação moderna bem armada, revertendo papéis sexuais e revelando o tipo de hierarquia do poder tão caro aos americanos. A sempre interessante Sandra Bullock (estranho a quantidade de gente que a detesta como presença e atriz) faz uma chefona do setor editorial, na competitiva Nova York. Essa executiva é canadense.

Ela tem um secretário (‘assistente’ soa melhor e mais politicamente correto), interpretado pelo alto e relativamente cômico Ryan Reynolds, formiga trabalhadora que sonha em ter seu talento para a literatura revelado um dia. Sua penúria junto à chefe odiada e mal amada entra como investimento para o futuro.

Esse ponto de partida tem muito das comédias clássicas do passado de Hollywood, dos filmes de Spencer Tracy e Katharine Hepburn, talvez alguma coisa de Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960), de Billy Wilder. A atualização moderna é o fato de a mulher ser a casa de força e o homem seu subalterno. Um início realmente promissor.

A coisa melhora quando a chefe canadense é informada de que problemas no seu visto de trabalho estão prestes a expulsá-la dos EUA, fazendo-a perder o emprego. Ela imediatamente arma uma chantagem para seu assistente vulnerável e forja um esquema de casamento encomendado. Se ele não cooperar, seu futuro como escritor estará arruinado. A farsa irá enganar a todos no escritório e a família do rapaz, no distante Alasca, para onde o novo casal irá no final de semana seguinte, apresentá-la.

Infelizmente, daí pra frente é ladeira abaixo, e em alta velocidade. O computador responsável pelo roteiro (porquê os melhores roteiristas dos EUA estão na televisão?) parece ter sido programado com pedaços de Entrando Numa Fria, onde os pastelões de sempre sobre a recepção da ‘noiva’ pela família dão ao filme um ar de novela em reprise.

Mais curioso ainda é a maneira como as tensões sexuais entre esses dois adultos são tratados com a sensibilidade de crianças de 12 ou 13 anos de idade, onde reina o ‘qui-qui-qui’ de ver o outro nu em algumas cenas constrangedoras não tanto pela situação, mas pela forma como são apresentadas. Se na boa TV americana, adultos se relacionam como adultos, é em Hollywood que prevalece o comportamento infantil aplicado duramente a personagens adultos.

A coisa ainda piora com a possibilidade de o rapaz reatar relações com uma namorada antiga, claramente a coisa mais sensata a se fazer, e não assumir um novo amor que surge mais como ordens do estúdio (Touchstone Pictures, da Disney) do que como algo que o espectador acredita. A Proposta é, efetivamente, recusável. Deverá ser um sucesso, claro.

Filme visto no UCI Ribeiro, Boa Viagem, Recife, Julho 2009