Thursday, May 29, 2008

'O Tempo e o Lugar': Recortes Rejeitados


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

A partir da projeção de um filme, questões surgem que revelam tensões inerentes à sociedade brasileira, em relação à luta pela terra. Na sessão de pré-estréia terça à noite do documentário O Tempo e o Lugar (Brasil, 2008), filme de Eduardo Escorel sobre o agricultor alagoano Genivaldo da Silva, o clima ficou tenso depois da exibição no Cinema da Fundação (Recife). Escorel, um dos nomes mais importantes da cinematografia brasileira (foi montador de Glauber Rocha em Terra em Transe, de Eduardo Coutinho em Cabra Marcado Para Morrer e, recentemente, de João Moreira Salles em Santiago), fez um filme com o único ponto de vista do seu personagem.

Genivaldo da Silva veio especialmente ao Recife para acompanhar a projeção do filme, que o registrou em diferentes momentos ao longo de um período de nove anos – em 1996, 2005 e 2007. O contato inicial de Escorel com Genivaldo veio de um episódio do notório especial televisivo dos anos 90, Gente Que Faz, levado ao ar semanalmente aos sábados da era FHC, na Globo. Dirigido por Escorel - que incluiu o episódio embriagadamente otimista em tom nos primeiros minutos do seu filme -, O Tempo e o Lugar parece partir para uma desconstrução do aspecto alegremente publicitário daquela peça, ao longo de cerca de 100 minutos. Lembra a revisão de Salles sobre uma primeira tentativa de fazer um filme em Santiago.

Esse personagem rende um filme pelo fato de ter passado por algumas encarnações políticas e partidárias ao longo da sua trajetória, e isso pode tanto ser visto com maus olhos como por uma representação de reinvenção num mundo instável.

Foi integrante do MST, e diz no filme ter recebido treinamento de integrantes do Sendero Luminoso, movimento revolucionário peruano de ordem maoísta, informação contestada ao final da sessão por ex-companheiros de Genivaldo. Segundo Genivaldo, o treinamento os prepararia para enfrentar a policia e seguranças de fazendeiros.

Fora do MST, entrou para a Pastoral da Terra (Igreja Católica), onde também passou a discordar da postura reinante. Depois, militou pelo PT, apoiando a luta de Lula, e chegou a ser candidato a prefeito, sendo expulso do partido. Crítico de Lula, o presidente, ("Fome Zero e Bolsas Família não mudam nada politicamente"), Genivaldo hoje atua de forma independente, estimulando famílias a trabalhar suas terras, ele mesmo o dono de uma propriedade em Inhapi, no sertão de Alagoas.

"Cada vez mais, me parece, que o documentário marca o encontro entre o personagem e quem o filma. Se eu não contesto as coisas que ele diz, isso significa implicitamente que eu endosso o que ele me conta ao entender que aquela é a narrativa dele. Ele pode ser vítima da sua própria memória seletiva como todos nós, e não vejo nisso um problema", disse Escorel no debate, respondendo a um questionamento da platéia sobre o senso de responsabilidade que documentários deveriam ter.

"Vivemos uma época onde sempre esperou-se muito do documentário como capaz de responder às grandes questões, ou de persuadir politicamente ao defender uma causa. Não é o tipo de filme que eu tenho tentado fazer. Me interessa mais conhecer e entender meu personagem nas suas dificuldades e contradições."

Um membro da platéia lembrou que "não trata-se de um filme sobre um avô brincando com os netos, mas sobre um personagem de luta que participou de um movimento de luta e há repercussões que vão além da figura dele". Respondendo, Escorel disse preferir fazer um filme que dialogue com o espectador ao invés de entregar tudo pronto num painel 'completo'.

O estilo de Escorel no filme não parece casar bem com olhares apaixonados demais por uma causa que é historicamente delicada no Brasil. Apreciar o filme sem que o pulso acelere parece exigir uma distância razoável do assunto, seguida de um olhar generoso para com os desdobramentos atuais do cinema de documentário.

Jairo Amorim, coordenador estadual do MST, presente na sessão, tomou a palavra: "Não sei se fiquei feliz ou triste, pois vim para assistir e terminei virando personagem no filme. Creio que faltou contextualizar a história e o porquê de Genivaldo ter saído do movimento. Por mais que tenhas tentado ser imparcial, não conseguiu, pois um filme fica para a história. Soa como uma verdade que engole os motivos", disse.

No seu momento mais duro, Amorim virou-se para Genivaldo da Silva e, depois de parabenizá-lo, de qualquer forma, "peço cuidado para que esse filme não faça latifundiário bater palma para você, para a grande mídia não criminalizar ainda mais nosso trabalho". Genivaldo preferiu não comentar.

O que aconteceu na sessão de terça foi um embate entre um certo sentido moderno de cinema e paixões políticas humanas e tradicionais. Longe de um "sentido jornalístico" de reportagem televisiva onde diferentes lados são ouvidos para formar mensagem equilibrada do todo, O Tempo e o Lugar alinha-se com desdobramentos muito discutidos atualmente no gênero documentário, que assume cada vez mais a aura de obras pessoais onde antigas concepções são descartadas.

O próprio Santiago, essencialmente um filme sobre o seu realizador, e não sobre o personagem título (outro motivo de acirradas discussões), Jogo de Cena, onde a verdade existe no emotivo, e não nos fatos relatados, mesmo caso de dois filmes extraordinários exibidos em Cannes semana passada, o israelense Valsa com Bashir, de Ari Folman, (uma animação...) e o chinês 24 City, de Jia Zhang Ke, curioso companheiro de filosofia de Jogo de Cena, preocupam-se muito mais com versões do que com fatos.

O que fica para o espectador é a pergunta: causa tão explosiva sustenta-se em tratamento tão livre de julgamentos?

2 comments:

Victor Rodrigues said...

Por mais que a maioria da platéia que participou do debate tenha sentido falha no documentário, queria dizer que não foi uma opinião de toda a platéia, como alguns sugeriram ser, que a "platéia toda" estava descontente com isso, como se existisse uma pessoa-platéia com um sentimento unificado.

Achei na realidade interessante a opção do diretor de montar o filme com a visão do Genivaldo dos fatos. Afinal, por mais que as opiniões sobre o MST e outros episódios façam parte do filme, realmente o objetivo do filme não é criar um objeto contenedor de toda a discussão política em torno de situações cujo balanço necessita de uma reflexão tão mais vasta, a proposta ali é outra. E numa atmosfera pós Jogo de Cena acho que esse tipo de opção cai muito bem.

Os que duramente criticaram o filme, pelo jeito, pensam documentário necessariamente como uma obra crítica completa, cheia de rebatimentos sobre cada argumento levantado. Alguns inclusive acredito que foram lá especificamente para criticar o filme, basta lembrar que uma das que estava discutindo energicamente contra a "falta do debate" ou "opinião massificada global" do filme soltou ter acompanhado jornais em torno da polêmica MST / O tempo e o lugar, provavelmente o que as levou até o cinema.

O próprio Genivaldo é bastante contraditório, o que deve ser observado no documentário é a verdade dele como sendo sua verdade, não a absoluta, documentário não deve ser visto com os olhos deslumbrados, a memória anotando as "verdades" e o senso crítico de férias, a gente precisa estar atento, e fica muito claro que o filme não é suficiente para quem quiser ter uma opinião formada a respeito dos movimentos sociais que Genivaldo participou.

O próprio Escorel falou que a idéia era levar a história de um homem que provavelmente ia morrer ali, ele e sua saga, permanecer esse instante de vida no Cinema. Ele certamente não queria fazer um tratado daquele tempo nem da "luta pelo lugar". É como se ele nos tivesse levado àquela casa verde-limão pra conversar com o Genivaldo, gente que faz, mas que provavelmente esquece, aumenta, distorce, como qualquer pessoa numa conversa sobre o passado ou sobre sua vida.

Infelizmente não tenho o costume de entrar nesses debates da fundação, prefiro acompanhar na minha mesmo, e como estava com bastante sono, não quis correr o risco de alongar muito a coisa também, mas aproveitei o post aqui pra dizer que gostei do filme sim, do jeito que ele é, e que talvez se ele entrasse no mérito de mapear todas as verdades, não seria tão interessante como cinema.

Sentei perto do Genivaldo e sua família, foi interessante ver os dois ângulos do documentário: aquele na telona e aquele outro que se formava na fila da frente, do pai e dos filhos comentando, se emocionando com a imagem da família refletida.

CinemaScópio said...

bom post Victor. Uma das chaves para entender a noite foi uma das pessoas que protestavam utilizar como parâmetro de "bom documentário, daquele que lhe dá vontade de seguir em frente lutando" o filme de Sylvio Tendler "Encontro com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá". Interessante.