Thursday, February 25, 2010

Um Lugar ao Sol


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma maneira de pesar obras de expressão artística é procurar o ponto de vista do realizador. Um exemplo atual é um dos favoritos ao Oscar 2010, Guerra ao Terror (The Hurt Locker), que mostra a rotina de um grupo de soldados na Guerra do Iraque sem tomar claro partido. Talvez seja um plano de negócios, evitar perder espectadores patrióticos nos EUA. É possível argumentar que o tom do filme é “contra”, dada a dureza exposta, mas há uma clara postura “não me comprometa” ausente, por exemplo, do cinema americano de esquerda dos anos 70. Já no documentário Um Lugar ao Sol (2009), do pernambucano Gabriel Mascaro, o ponto de vista não poderia ser mais claro.

O filme estréia no Recife depois de uma carreira notável em festivais no Brasil e no exterior. Um Lugar ao Sol, antes de tudo, é uma anomalia. Parece ganhar por W.O. em termos de produção brasileira de cinema, fruto de uma cultura que evita atritos, tanto no cinema de ficção, como, em especial, no de documentário, onde os personagens são reais, em contextos verdadeiros.

Mascaro, cineasta jovem, partiu para apontar sua câmera como um objeto pontiagudo para a pouco registrada camada mais alta da sociedade, ou seja, os ricos. É um cinema jovem aparentemente marxista, armado com sua câmera petulante. Põe em ação uma espécie de juventude em marcha para abordar o que lhe faz mal, um ressentimento de classe onipresente na sociedade brasileira, mas, repetimos, pouco registrado pelo cinema do Brasil.

Pouco registrado se não pensarmos nos retratos de classe fornecidos por revistas como Caras, ou via paixões culturais do país como telenovelas onde a classe alta é algo a ser almejado socialmente, da decoração estridente dos interiores Projac ao amarelo irreal do suco de laranja servido em cena.

Nesse sentido, Um Lugar ao Sol chega numa cultura de imagens que sempre usou a câmera para escanear as camadas mais pobres nos nossos “favela movies” (ou “pinto no lixo movies”), da ficção ou do documentário, sempre feitos por realizadores brancos, da classe média-alta, algo de encantados com universo social tão distante deles, como elementos exóticos.

Mascaro entrevista moradores de coberturas no Recife, Rio e São Paulo para ouvir idéias verbalizadas sobre privilégio, riqueza e estatura social, poeticamente traduzidas pelo fato de todos eles estarem, literalmente, por cima, nas áreas mais nobres dos seus arranha céus. Usam a altura como proteção para o que está lá embaixo.

É uma sessão desconfortável para boa parte da platéia, pois os depoimentos, marcados na quase totalidade por um orgulho evidente dos personagens de estarem ali (nas coberturas e no filme), juntando uma espécie de show de horrores oral e social. O recorte percebido em Um Lugar ao Sol sugere o registro de tensões evidentes num país tão desigual, e a capacidade que o filme tem (mesmo pregando para platéias já convertidas) de gerar debate é notável.

No entanto, esse documentário desdobra-se ainda em direção à própria idéia de viver em cidades grandes. Há um diálogo perfeito com uma cidade como o Recife, que está sendo demolida a olhos vistos para dar lugar a noções de lucro instantâneo, correndo solto por causa de um urbanismo que parece ter a ética generosa de uma prostituta. O resultado disso, é o aumento dos abismos entre as classes, cada vez mais segregadas pela própria cidade.

Nem tudo, vale lembrar, é sombrio. A mera existência de Um Lugar ao Sol parece apontar para o início de uma mudança no olhar critico do próprio cinema brasileiro para com o país. Seria isso resultado pratico do governo Lula, que veio da esquerda e que, por linhas tortas, ainda exerce movimentos cada vez mais subreptícios de esquerda?

Semana passada, no Festival de Berlim, o filme de ficção Bróder, de Jéferson D, cineasta de pele negra que filmou sua comunidade de periferia com aparente verdade, ousou, ele mesmo, ao registrar, em uma única cena, o mundo dos ricos. Interessantíssima a cena pela questão do ponto de vista ali aplicado, pois é a única nota falsa de todo o filme.

Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, Outubro 2009

9 comments:

neco tabosa said...

esse filme é foda! e a reflexão sobre a mudança de ponto de vista é excelente. bravo! quero ver Bróder e Brasília Teimosa pra ver se embarco nessa teoria de Lula como gatilho da mudança do olhar.

CinemaScópio said...

Eu acho essas novas expressões interessantíssimas, e serve como antídoto para o pau mole geral da produção brasileira desde sempre. O Brasil é um país agressivo, mas isso não parece se traduzir no nosso cinema, que, em greal, está sempre olhando pros lugares errados.

Carlos Alberto Mattos said...

O fato de as pessoas terem sido abordadas mediante uma mentira a respeito do diretor me coloca uma questão ética perante esse documentário. Será que filmar o "inimigo" justifica qualquer artifício? As pessoas teriam se expressado da mesma forma se não estivessem gravando com um "diretor de publicidade internacional"? O filme nos traz uma "verdade" costumeiramente dissimulada, mas a que preço?

Anonymous said...

Interessante esta ponderação de Carlos Alberto Mattos. A princípio, acho o filme de Mascaro maniqueísta e mesmo naíve em certos pontos (tenho uma cena autoelogiosa muito estranha). É isso.

CinemaScópio said...

Carlos, eu entendo bem essa questao da etica, e aceito as ponderaçoes, ate mesmo como realizador. Mas no final das contas, eu enxergo o filme dentro de um historico de cinema brasileiro, o filme projetado, suas intençoes, seu tom pessoal e politico. Me parece extremamente verdadeiro para com o Brasil, mesmo que isso deixe gosto ruim na boca. O Brasil, alias, é um pais muitas vezes amargo, e nossa cultura tem a tendência de evitar isso. Os caminhos tomados para se chegar a um filme sao sempre questoes importantes, mas tb mostram o grau de comprometimento com uma visao politica, artistica. Como bem falou Mascaro num debate pos sessao no Janela Internacional de Cinema, no Recife, "tvz seja a hora de nao termos mais os entrevistados socializando felizes no coquetel de lançamento de um documentario, como é a norma no cinema brasileiro".

Gleisson said...

O documentário gera um grande debate social, pois não é nenhum pouco democrático, aborda somente a classe abastada e cita os morros e favelas em contraste com a paisagem dos arranha-céus como um “povo” que vai construindo o que pode por cima da natureza sem consciência dos impactos ambientais que a ocupação dos morros pode trazer e que eles estão invadindo o espaço natural urbano.

Anonymous said...

Onde poderia assistir? encontrei ele no fileserve, mas nao consigo pega-lo ate o final...

goitaense said...

http://www.megaupload.com/?d=3TDF6JCJ

Para quem quiser assistir ao documentário. Eis aqui o link

Del Kamui said...

Documentário interessantíssimo. Visto de uma perspectiva totalmente por cima...

Para assisti-lo, aqui vai o link:

http://rsfilmesbrasileiros.blogspot.com/2011/08/um-lugar-ao-sol.html