Thursday, May 15, 2008

Leonera


Kleber Mendonça Filho

cinemascopio@gmail.com

de Cannes

Todo ano, a Cahiers du Cinema publica o seu "Atlas" do mundo, um relatório de como anda o cinema mundial, cada país (ou mercado) coberto por um crítico local (o Brasil é avaliado por Pedro Butcher, da Folha de S. Paulo). O experiente crítico Quintín abriu seu texto sobre o cinema argentino com grande pessimismo, mas aliviado pelo fato de "não estarmos produzindo filmes fascistas como Tropa de Elite, do nosso vizinho". E se ele anda pessimista com a produção deles, para o olhar vizinho brasileiro os argentinos continuam fazendo filmes que ajudam a manter uma média observada das mais sãs, caso de Leonera, filme de Pablo Trapero que passou hoje na competição. Rodrigo Santoro tem participação interessante com personagem bissexual cuja importância não traduz-se no seu pouco tempo na tela.

O filme, na verdade, pertence a Martina Gusman, no papel de Julia, e revela-se um clássico "estudo de personagem". Ela vai presa pela morte do namorado, que trouxe seu amante para morar na casa dela. Uma discussão violenta terminou na morte do homem, e acompanhamos via narrativa processual a relação dela dentro da prisão, a comunidade interna marcada pelo homossexualismo (guardas penitenciárias e presas, em grande parte, gay), amizades e sua adaptação num bloco para presas mãe. Julia está grávida.

Rodado em tela larga e a câmera na mão típica de filmes intimistas, Leonera tem os cacoetes de uma produção latina realista, preciso na sua vontade de mostrar o amadurecimento de uma garota que ainda tenta entender o que fez, e porque está ali, com o filho que, até os quatro anos de idade, cresce na prisão. Sem ser particularmente excelente, tocante ou diferenciado, Trapero (El Bonaerense) fez, de qualquer forma, uma crônica segura não só nas atuações, mas também na ambientação que nos diz algumas coisas sobre o processo de justiça e detenção num país latino.

O que mais me chamou a atenção: É um filme incrivelmente feminino, e sempre me interessa muito ver obras de homens com olhares tão interessados pela mulher (recentemente, Paul Verhoeven em A Espiã, Céu de Suely, de Karim Ainouz). Julia vai de amante machucada a presa atordoada e, em momentos que explicam, talvez, o título, a uma fera enfurecida, ataque causado por eventos relacionados à sua cria. E essa fera está ainda enjaulada, muito bom. É um aspecto sempre válido de mostrar a mulher dona do seu caminho, mesmo com uma corrente no tornozelo.

Eu sei que, de um tempo para cá, alguns colegas e amigos críticos no Brasil estão trabalhando duro para desativar essa noção até certo ponto benevolente para com o cinema argentino, Trapero, inclusive, tornou-se incrivelmente "uncool" depois do seu, de qualquer forma, muito agradável e verdadeiro Família Rodante. Mesmo assim, eu não consigo olhar para um Leonera com desprezo, especialmente se compará-lo à nossa média nacional que, para mim, permanece (na ficção/longa, claro), com as obrigatórias raras exceções, das mais lamentáveis.

4 comments:

ROBNEY BRUNO said...

Muito bom Kleber, é exatamente assim que eu vejo a questão. Salvo algumas excessões, que conseguem furar este bloqueio, enquanto nossas leis de incentivo tiverem servindo de tetas para uma cadeia cada vez mais viciada de cineastas (sempre os mesmos) que não dão o mínimo valor no dinheiro do contribuinte, nunca conseguiemos atingir o nível dos nossos "hermanos". Acho que já está mais do que na hora de exigir dos realizadores de cinema, uma contrapartida mínima de bilheteria em seus projetos.

Robney Bruno

Victor Rodrigues said...

sei não, Kleber... A Casa de Alice, O Céu de Suely, Cinema Aspirinas e Urubus, Cão sem Dono, Mutum... nada lamentável, mesmo que o 'mainstream' do cinema brasileiro produza, principalmente, bobagem.

e robney, na moral, o que uma contrapartida mínima de bilheteria ia ajudar na produção de filmes brasileiros de qualidade? talvez, se você tivesse dito algo como o mesmo governo que diz investir em cinema garantir uma divulgação mínima para o 'bom cinema brasileiro', ajudando a formar um público pra esse cinema, aí tudo bem, concordaria contigo.

ROBNEY BRUNO said...

Na boa Victor. Esses filmes citados são as excessões, que eu, e acredito também que o Kleber, citamos em nossos textos. Agora imagine, para sair essas produções, quantas porcarias (lê-se dinheiro jogado fora) não foram feitas nestes anos todos (uma média de 60 a 80 longas por ano, fora os curtas). O que nós precisamos é fazer com que os produtores de cinema dêem uma contrapartida com os seus projetos. Tudo bem, para quem está iniciando, releva-se até o terceiro projeto, mas a partir daí que os filmes produzidos pelo menos devolvam a quantia investida para os cofres públicos. Acredito que dessa maneira só iriam produzir quem realmente tem bons projetos, e com isso, adivinha: a qualidade da nossa produção iria melhorar substancialmente. Pelo menos é o que eu acredito.
Robney Bruno

Victor Rodrigues said...

não tinha visto a coisa da "exceção" que kleber tinha falado, a gente nem discordou mesmo.

desse jeito que tu tais falando a casa de alice com certeza, alguns desses outros filmes muito provavelmente, teriam sérios problemas para serem realizados com incentivo, pois não "se pagam" em termos de bilheteria, mas são filmes necessários.

eu sei que tem muita gente que faz porcaria com dinheiro público, mas essa tua sugestão, na minha opinião, não é critério que vá melhorar o cinema produzido, e sim valorizar retorno, talvez inclinando o cinema subsidiado para projetos num modelo mais industrial, novelesco, de "massa". Para mim, filmes cuja função primordial é se pagar como produto através de bilheteria nem deveriam receber incentivo dessa natureza.

os filmes hoje que realmente levam milhões às salas de cinema para ver filmes nacionais, são à grosso modo uma porcaria, acho que você concorda comigo nesse ponto.

talvez falte aí uma curadoria mais preocupada e capacitada para a seleção de projetos interessantes, de bom nível técnico pelo menos. e um bocado de incentivo no outro ponto da questão do cinema brasileiro, que não é só a realização, mas também a distribuição dos filmes: salas, tv, divulgação, formação de público. Esse lado que eu acho negligenciado, uma grande falha na política do cinema brasileiro.

[]s

victor