Saturday, May 17, 2008

Linha de Passe

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Passou agora de manhã para a imprensa o Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, o segundo brasileiro na competição de Cannes 2008, o primeiro foi Blindness, de Fernando Meirelles. A primeira impressão é a de talvez ser o melhor momento de Salles desde Central do Brasil ou, melhor, Terra Estrangeira (1995) que também foi fruto de parceria com Thomas. O filme me chamou a atenção em diversas questões.

Linha de Passe tem como cenário a cidade de São Paulo, em especial sua periferia. Foi estranho ver imagens de São Paulo filmadas por dois dos mais destacados cineastas do Brasil, nas telas de Cannes, com um intervalo de três dias. E essas imagens não poderiam ser mais diferentes no tom.

Em Ensaio Sobre a Cegueira, Meirelles usou São Paulo como um cenário artificial, ou um cenário real maquiado de ficção, uma cidade genérica, fotogênica no seu caos e feiúra. Perguntei a Meirelles, uma vez que, se a cidade pertenceria a uma outra dimensão, porquê utilizar de maneira tão eloqüente o Minhocão, por exemplo? "O filme foi feito para o mundo inteiro ver, e no final das contas, digamos que 5% do público total de Blindness será brasileiro, portanto ainda restam todos os outros espectadores que não conhecem a cidade". Meirelles pode estar certo, uma vez que colegas estrangeiros nem sabiam que tratava-se de São Paulo, Mahnola Dargis, critica do The New York Times, inclusive escreveu que "Toronto está uma bagunça no filme".

No filme de Meirelles, dotado de notável trabalho de faz de conta técnico, vemos com freqüência nos cantos dos planos placas de veículos com o design familiar brasileiro do Detran (três letras seguidas de quatro números, cor cinza), mas no espaço superior reservado para a cidade e o estado, há um vazio, como se a identidade tivesse sido digitalmente apagada, a maior deixa cênica para a perda da identidade da cidade no filme.

Vendo o Linha de Passe, de Salles e Thomas, não foi difícil chegar a lembranças de Terra Estrangeira, e de como aquelas imagens de São Paulo, no preto e branco granulado da ressaca Collor, talvez fossem até mais muito interessantes como tratamento visual e atmosférico para o livro Ensaio Sobre a Cegueira!

Nesse novo filme, a intenção é trazer uma representação fiel e urgente de São Paulo, e a referência mais recente é a de Os 12 Trabalhos, filme de Ricardo Elias onde o seu personagem principal também é um motoboy, profissão paulistana que também ganha grande destaque em Linha de Passe.

O motoboy em questão é um dos quatro irmãos de uma mesma mãe, moradores da periferia e, cada um deles, vivendo suas vidas em montagem paralela que consegue não apenas equilibrar as histórias de cada um deles sem que nenhuma pareça precária ou carente. Principalmente, nos dá a sensação de que aqueles personagens, durante a maior parte da projeção, não existem exclusivamente para satisfazer as vontades dos realizadores (algo que eu senti em Os 12 Trabalhos). Fica a sensação de que esses cinco existem fora do filme.

Vale observar que essa família carece de uma figura paterna, aspecto levantado na coletiva de imprensa por uma jornalista italiana que fez menção a Rocco e Seus Dois Irmãos e a um certo aspecto possível de influência do neo-realismo italiano. A carência paterna (ou presença forte de uma mãe) está presente em Terra Estrangeira, Central do Brasil e Água Negra, que Salles fez em Hollywood.

A ausência do pai é problemática para pelo menos um deles, o mais novo, vítima daquele tipo bem carinhoso de racismo brasileiro intra-familiar, o racismo do tipo carinhoso. Negro, seu pai é visto num toque reconhecivelmente autoral através de uma foto rasgada, o pai separado (por um rasgão no papel) da mãe, num momento do passado onde os dois, aparentemente, existiam como um casal.

Esse garoto, Reginaldo (Kaique de Jesus Santos), nutre atração por ônibus, lindamente desenvolvida em imagens (o ensaio dele atrás do motorista é talvez a cena mais expressiva do filme) ao longo da narrativa para um "pay off" no final que, segundo o próprio Salles na coletiva, foi algo adaptado de fato, a história de um garoto da periferia que chegou a roubar mais de 30 ônibus, dirigindo-os pela cidade. O fato foi abordado num curta, infelizmente pouco visto, chamado O Menino e o Bumba (13 minutos, 2007), dirigido por Patrícia Cornils.

Salles volta também à questão dos milhares de anônimos que dão seus nomes em seqüências de cortes rápidos, como em Central do Brasil, ou mesmo na montagem de rostos latinos de Diários de Motocicleta, e desta vez temos um dos meninos (Vinícius de Oliveira, de Central do Brasil, agora adulto) como aspirante a jogador de futebol, que sabemos ser o principal sonho de profissão dos meninos pobres brasileiros.

Um terceiro irmão embrenhou-se numa igreja, tentando espalhar a palavra de Deus, e o personagem da mãe (gestante de um quinto) traz para o filme a questão das classes, uma vez que sua patroa é da classe média alta, provável moradora de Pinheiros ou dos Jardins.

Chama a atenção no filme a maneira agressiva como o trânsito é filmado, e isso inclui dois momentos que passam discreta e seguramente como "cenas de ação". Há também uma tentativa valente de filmar futebol, algo que nunca realmente funciona no cinema, seja ele brasileiro ou não. Minha teoria é que algo na fluência da montagem em cinema revela a natureza falsa dos momentos diferentes colados, e com a educação de anos de TV ao vivo, os olhos se recusam a aceitar. Mesmo assim, Vinícius tem a presença física adequada para acreditarmos na sua instabilidade em relação a tudo o que não tem a ver com futebol.

Linha de Passe, no entanto, chega a uma conclusão que me incomoda. Parece existir uma desejo de se chegar a algum lugar em relação aos personagens, cada um terminando com a sua assinatura cinematográfica do que o destino pode estar reservando para eles, e isso num filme que sai-se tão bem na demonstração livre de pequenos momentos da vida.

Uso de música ( Gustavo Santaollala) cria os trilhos mágicos sobre os quais veremos os rostos de cada um deles, numa tentativa de deixar os finais abertos para cada um, mas, ao mesmo tempo, distribuindo boa vontade e compaixão para um grupo que sugere algo de piegas.

De qualquer forma, Salles e Thomas nos dão um painel humano rico, com a estampa forte de um lugar, e quase todas as notas soam afinadas. Em termos de cinema brasileiro, Linha de Passe representa o que melhor há atualmente, e internacionalmente encaixa-se nas especificações do cinema latino que tem marcado presença. Não é coincidência que Leonera, de Pablo Trapero, co-produzido pela Videofilmes de Salles, esteja tão perto em tom e estilo.

Filme visto na Lumiere, Cannes, Maio 2008

3 comments:

Daniel Aragão said...

O Menino e o Bumba é um dos piores curtas que vi na safra 2007/2008. O argumento é bom, e espero que em linha de passe ele tenha se desenvolvido bem.

Rodrigo Carreiro said...

Manohla Dargis escreve no LA Times. Mas o texto ficou massa, e a cobertura continua sendo a melhor que vejo na mídia nacional, junto com o blog do Merten. Parabéns!

CinemaScópio said...

obrigado Rodrigo.
a não ser que ela tenho trocado essa semana, ela escreve no NY Times! Olha lá.