Tuesday, February 10, 2009

Singularidades de Uma Rapariga Loira


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Manoel de Oliveira apresentou na mostra Berlinale Special (fora de competição) mais uma jóia da sua coleção de cinema. Os 64 minutos de Singularidades de Uma Rapariga Loira representam esta que poderá confirmar-se como uma das melhores horas projetadas do ano, união um pouco acima do perfeito entre as sensibilidades da literatura e das imagens. É uma adaptação bastante livre (no sentido mais leve possível da palavra) da obra de Eça de Queiroz, num filme moderno sobre um mundo e uma moral do passado que, de alguma forma, casam perfeitamente com uma idéia bela de Portugal, ou da alma portuguesa. Esse aspecto de algo tão simples na sua sofisticação, e tão moderno no seu classicismo resultam numa preciosidade.

Peculiaridades de Uma Rapariga Loira faz belo par com o novo filme da francesa Catherine Breillat, Barbe Bleu (Barba Azul), exibido na paralela Panorama. Ambos são adaptações de clássicos, feitos com enorme simplicidade e com escritas autorais, identificáveis do ponto de vista da assinatura pessoal.

Lindamente composto por enquadramentos precisos (a fotografia de Sabine Lancelin é especial), Oliveira nos dá a história de um homem (Ricardo Trêpa) que decide contar algo que lhe aflige a uma estranha (Leonor Silveira), e isso é feito nesta que é uma das grandes convenções do cinema, o trem.

Num palavreado encantador fiel aos escritos de Queiroz, ele narra a sua história com a entrada de flashbacks que, fiéis ao espírito do próprio filme, conseguem ser tão rigorosos quanto imprevisíveis nas escolhas do que mostrar. Nos apresentam o mundo, a lógica e a ética social e pessoal de um Portugal antigo, mas com a ação situada no presente. Uma narração que informa da chegada de alguém no Cabo Verde num vôo da Tap de alguma forma soa como se tivesse sido num antigo vapor.

Nas lembranças angustiadas do personagem, ele, que trabalha na loja do tio, observa fascinado pela janela uma jovem loira do outro lado da rua, por quem apaixona-se. A linda rapariga loira (Catarina Wallenstein) nos é apresentada por Oliveira como uma visão perfeita da beleza, e sua imagem traduz a descrição mais apaixonada possível que um pretendente romântico seria capaz de fazer dela. Detalhe especial da sua figura é um leque oriental, que sempre tem na mão, objeto que registra como notável fetiche estético.

O homem apaixonado, ao pedir a mão da mulher em casamento, terá de enfrentar o pensamento do tio, que não acredita que o sobrinho deverá casar-se por não ter ainda condições financeiras para arcar com uma família. Uma série de provas morais e éticas serão superadas, o que inclui pelo menos uma surpresa em relação à personalidade dessa mulher real totalmente idealizada pelo senso exacerbado de romance do personagem.

É um filme extremamente culto, repleto de detalhes fascinantes que estimulam a imaginação através da imagem pura do cinema. A perda de um chapéu segue a falência financeira do nosso personagem, as pinturas e azulejos portugueses em cena, uma seqüência elegante em som e imagem num recital de harpa, assim como alguns dos elementos mais enigmáticos do filme, como o seu plano final, estímulo à discussão e à imaginação.

Impossível não citar também o humor que pontua tudo, uma leveza que nos leva a crer que o Sr. Oliveira, 100 anos de idade, deve ser, ele mesmo, um personagem e tanto, e vai aqui um destaque especial para a forma como ele refere-se (em imagens) à sua personagem feminina. Tudo parece resultar num seguro galanteio de tempos antigos, e que funciona muito bem para os que suspeitam ser a mulher algo de indizível na sua essência, daí ser melhor apenas filmá-las.

O que impressiona na obra de Manoel de Oliveira não é apenas a preciosa nota de rodapé de que este realizador tem 100 anos, algo que por si só beira o metafísico, mas o outro fato de ele ter filmado Peculiaridades de Uma Rapariga Loira naquele mesmo mês. Ou seja, estamos no início de fevereiro, no Festival de Berlim, e o filme, rodado dois meses atrás, já está finalizado, exibido e é lindo. Há ainda uma outra informação que beira o alarmante: o próximo filme de Oliveira – O Estranho Caso de Angélica -, que ainda será filmado em tempo para Cannes (maio)...

Uma das coisas boas de Berlim é que coletivas de filmes pequenos e autorais como este têm o tom de encontros com a imprensa. No caso de Oliveira, acompanhado de seu elenco e produtores, a coisa teve o clima de um sarau. Seus colaboradores depuseram sobre o estilo do diretor, e todos parecem concordar que o filme já existe antes mesmo de ser filmado, e que todo detalhe conta.

O realizador falou do seu interesse por uma história que vê como atual. "A situação entre o tio e o sobrinho, que envolve créditos e empréstimos, é exatamente o que se passa actualmente na chamada crise financeira. O meu personagem é um homem sem crédito, fonte dos seus problemas."

Sobre seu uso esparso de música, lembrou que muitas vezes "a música é não pôr musica". "Da Vinci dizia que a musica é a constituição do invisível, e ela reflete aspectos da alma, do espírito. Naturalmente, a conversa foi para o tempo e a idade. "Idade e felicidade dependem de forças obscuras, e dependemos delas. Ao contrário dos políticos, não somos senhores do futuro e, com isso, experiência de vida não é conhecimento, é sabedoria."

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