Friday, October 9, 2009

Naked (DVD)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Chama a atenção que Naked (Inglaterra, 1993), de Mike Leigh, finalmente veja a luz do dia no Brasil meses depois do lançamento nos cinemas de Simplesmente Feliz (2008). O primeiro, que sai agora em DVD sem nunca ter sido distribuído nas salas, é a crônica mais sombria de Leigh, contrastando com esse último, seu filme mais risonho.

Premiado em Cannes com Direção e Ator (David Thewlis) dois anos antes da Palma de Ouro para Leigh por Segredos e Mentiras, o tom de Naked lembra o de uma ressaca. Como ocorre em ressacas, o mal estar é forte, mas a sensação de estar vivo também.

O filme segue algo de bêbado e nublado nas suas duas horas e dez minutos, com espasmos de sobriedade tocante, um pouco como a própria Londres.

É fácil identificar A Odisséia de Ulisses na trajetória de Johnny (Thewlis), o personagem central, que a discute nominalmente numa das suas paradas. Sua misantropia vem com o sarcasmo típico da Inglaterra, pródiga em oferecer personagens agressivos dotados de espessa carapaça. Há neles, quase sempre, sensibilidades insuspeitas.

Johnny faz parte de uma galeria peculiar de ingleses como Alex, em Laranja Mecânica (1971), Trevor, o skinhead de Made in Britain (1984), ou Francie Brady, o proto-punk mirim de Nó Na Garganta (1997). É uma gente desagradável, mas nunca monótona, talvez por serem agentes do caos.

Aos 27 anos (“parece 40”, diz uma interlocutora), Johnny é maduro o suficiente para ter entendido um suposto mau humor de Deus, e ainda jovem o bastante para detestar suas conclusões. Revela-se um profeta pessimista que, nos seus piores momentos, tem a verve de um poeta marginal afiado, um chato com alguma razão. Explica, por exemplo, sua má aparência como tentativa de mesclar-se aos ambientes.

Chega na casa da ex-namorada, Louise (Lesley Sharp), que divide o espaço com Sophie (Katrin Cartlidge, falecida precocemente em 2002), quase sempre chapada. Ela irá encantar-se com o charme pós punk de Johnny, anunciando o fascínio que as mulheres têm por ele. O estado geral da casa também ilustra o estado de espírito do trio, que ele levará a um colapso imediato.

E esse cíclope sairá pela cidade numa estrutura de encontros fortuitos que, mesmo lembrando Depois de Horas (1986), de Martin Scorsese, ainda soa notável e original. Se na noite nova-iorquina de Scorsese o personagem é passivo, na noite londrina de Leigh, Johnny é o catalisador de tensões constantes.

Essa dureza tem na fala a sua verdade maior, um fator e tanto em tratando-se de cinema inglês, aspecto também percebido em Kes (1969), de Ken Loach, outro momento importante do cine britânico lançado há pouco pela mesma Lume Filmes.

Como Loach, Leigh tem um ouvido e tanto para o falar britânico. O trio Johnny, Louise e Sophie, o casal de escoceses que latem xingamentos na rua, o outro personagem masculino em cena, Jeremy (Greg Cruttwell). Esse último, cuja nobreza entediada parece nos levar de volta ao Inquilino, de Joseph Losey, enriquece de forma perversa um universo britânico singular aqui filmado por Mike Leigh.

Filme revisto em DVD (Lume Filmes), Agosto 2009, Recife

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