Friday, February 13, 2009

Garapa (Panorama)


José Padilha, após a sessão de Garapa, no Cine Star 7, em Potsdamer Platz, Berlim.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A principal participação brasileira no Festival de Berlim 2009 é o documentário Garapa, de José Padilha, exibido na mostra paralela Panorama Dokumente. Padilha, claro, volta ao festival que, ano passado, concedeu o Urso de Ouro ao horroroso Tropa de Elite, seu filme anterior, e sua primeira incursão na ficção. De volta ao relato documental (surgiu em 2002 com o riquíssimo Ônibus 174), Padilha provavelmente irá provocar debates outra vez no Brasil junto à crítica com seu filme novo, que usa o cinema para apresentar um retrato literal, letra por letra, da fome, utilizando como personagens registrados três famílias cearenses do interior, vivendo em condições sub-humanas que a câmera intimista mostra em detalhe e em preto e branco.

O filme abre com uma citação a Josué de Castro, que reflete sobre a existência de duas fomes: a ausência de comida que leva o organismo a definhar, e a fome constante composta pela má alimentação que levará, de outra forma, ao colapso do organismo a longo prazo.

Curiosamente, o tema “fome” foi abordado brilhantemente na atual safra de cinema internacional pelo cineasta inglês Steve McQueen, a partir de um cenário sensorial, humano e político no seu Hunger (fome), sobre os protestos na Irlanda do Norte em 1981 que levaram o membro do exército republicano irlandês Bobby Sands a definhar via greve de fome. McQueen transcende em muito o seu tema através do próprio cinema, no caso dele interessadíssimo pelo elemento humano, interesse que vai do corpo à alma.

Garapa, claro, é um filme diferente, e um doc, que aborda um cenário brasileiro social crua e diretamente. Como uma espécie de cronista nacional de “grandes temas” sociais (a violência em Ônibus 174 e Tropa de Elite), Padilha se debruça sobre a fome de maneira literal. Vale destacar que, se em Ônibus 174 tínhamos um panorama social e humano bem equilibrado, provável reflexo dos múltiplos ângulos que seu material de arquivo foi capaz de fornecer, sem falar na competência de realização e carpintaria de Padilha, é fácil identificar em Garapa o realizador de Tropa de Elite, particularmente na super-simplificação de uma questão complexa.

Não parece existir aqui um conceito que transfome em cinema a sua tese-filme. O que temos é uma câmera abelhuda que se mistura ao cotidiano interno das três famílias, onde acompanhamos crises conjugais, acusações de traição, abandono e, especialmente, a alarmante não-dieta dos personagens.

Em close-ups de microscópio, vemos as perebas nos rostos e torsos de crianças e adultos, disputadas por moscas que, em algumas imagens, podem ser a própria câmera. Uma colher de açúcar servida a um garoto pequeno pela sua mãe arranca um quieto "urghh" da platéia, a mesma mãe que nos informa que o feijão é tão ruim que não seria má idéia carregá-lo numa espingarda, como bala.

Acompanhamos a longa caminhada de duas mães que voltam para casa sem leite, pois o estoque havia acabado na venda. Dois cortes, em especial, me chamaram a atenção num documentário sobre miséria, e esses dois cortes vêm no preciso momento que personagens cospem no chão.

Cria-se, portanto, uma narrativa minimamente dramática da escola corte seco e cresce no espectador o desconforto não tanto pela dureza do tema, mas pela sensação de a linguagem proposta que ganha contornos de um reality show do inferno. Nesse sentido, o filme é limitado, um cinema pobre, e que isso não seja confundido com a condição social dos personagens.

Em momento algum Garapa nos lembra que as mazelas de uma sociedade podem, talvez, estar ligadas à total falta de educação, falta esta que leva à falta de cidadania. É a fome e a miserabilidade por elas mesmas, e só, algo que do ponto de vista da informação não acrescenta zero a nada para o espectador consciente de que o mundo é um lugar onde o ser humano ainda passa fome.

Um pai de família, por exemplo, é alcoólatra e capaz de vender as portas e janelas da casa, chamando a mulher de ‘puta’. Ele talvez tenha sífilis, assunto discutido longamente durante uma visita da sua esposa (com três filhas pequenas) a uma assistente social. O papel do governo (Lula), cuja logomarca abre o filme (“Governo Federal – Um Brasil de Todos”) ganha destaque com pelo menos um depoimento onde fica claro que o Fome Zero é o único auxílio que tantas famílias têm na sua sub-existência, e que estariam muito pior sem o projeto.

Ainda mais problemático o filme torna-se quando essas tragédias de vidas privadas e destituídas de cidadania são interrompidas pela voz de Padilha (na locação, atrás da câmera) fazendo uma pergunta ao seu personagem do tipo “o senhor quer ter mais um filho?”. Acreditamos que o cinema é bem mais livre e rico de possibilidades do que Garapa poderá levar alguns espectadores a crer que ele é, um cinema que usa as amplas aberturas do meio para falar sobre a condição humana sem necessariamente usar a imagem chapada pelo que ela é, e nada mais além disso.

Sobre cinema, e vendo as imagens em preto e branco ultra-granulado (clichê pós-moderno da realidade dura, preset de software de edição de uma imagem ‘crua’ numa época da cine-tecnologia que permite a um adolescente filmar em alta definição colorida), temos os sons efetivamente ‘mono’ do filme (algo destacado por Padilha na sua apresentação do filme no Cine Star 7, em Potsdamer Platz, onde o filme passou ontem à tarde), e ainda um letreiro final mudo que impõe silêncio sepulcral auto-solene na sala.

Juntando tudo isso, é impossível não resgatar um pouco da história do próprio cinema brasileiro através do manifesto de Glauber Rocha, “A Estética da Fome”. Naquele manifesto, a idéia de fome não existe apenas na falta de comida, mas na pobreza como um todo, e seguia para refletir como retratar essa pobreza em imagens de um cinema possível para com o tema, para a natureza humana, para a nossa idéia política.

Eu perguntei a Padilha ao final da sessão sobre como ele teria chegado àquele conceito de crueza usado em Garapa, e se ele pensou na reflexão de Rocha sobre um cinema cuja imagem estaria à altura da identidade cultural de um terceiro mundo que precisa ser retratado por nós mesmos.

Ele respondeu: “Eu nunca li o manifesto de Glauber. Eu não me interesso por manifestos, não acho que faz parte do meu trabalho dizer a outros colegas cineastas como se deve filmar, estabelecer regras, não obstante o fato de eu respeitar muito Glauber. O conceito desse filme foi faze-lo da maneira mais simples possível, subtraindo tudo o que não é essencial ao processo, como cor, um som cru que sai apenas da tela, nenhum efeito digital. Tudo isso reflete a ausência de tudo que aflige essas pessoas, o que explica o conceito por trás desse filme.”

Fime visto no Cine Star 7, Berlim, Fevereiro 2009

Tuesday, February 10, 2009

Manoel de Oliveira - coletiva


Singularidades de Uma Rapariga Loira


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Manoel de Oliveira apresentou na mostra Berlinale Special (fora de competição) mais uma jóia da sua coleção de cinema. Os 64 minutos de Singularidades de Uma Rapariga Loira representam esta que poderá confirmar-se como uma das melhores horas projetadas do ano, união um pouco acima do perfeito entre as sensibilidades da literatura e das imagens. É uma adaptação bastante livre (no sentido mais leve possível da palavra) da obra de Eça de Queiroz, num filme moderno sobre um mundo e uma moral do passado que, de alguma forma, casam perfeitamente com uma idéia bela de Portugal, ou da alma portuguesa. Esse aspecto de algo tão simples na sua sofisticação, e tão moderno no seu classicismo resultam numa preciosidade.

Peculiaridades de Uma Rapariga Loira faz belo par com o novo filme da francesa Catherine Breillat, Barbe Bleu (Barba Azul), exibido na paralela Panorama. Ambos são adaptações de clássicos, feitos com enorme simplicidade e com escritas autorais, identificáveis do ponto de vista da assinatura pessoal.

Lindamente composto por enquadramentos precisos (a fotografia de Sabine Lancelin é especial), Oliveira nos dá a história de um homem (Ricardo Trêpa) que decide contar algo que lhe aflige a uma estranha (Leonor Silveira), e isso é feito nesta que é uma das grandes convenções do cinema, o trem.

Num palavreado encantador fiel aos escritos de Queiroz, ele narra a sua história com a entrada de flashbacks que, fiéis ao espírito do próprio filme, conseguem ser tão rigorosos quanto imprevisíveis nas escolhas do que mostrar. Nos apresentam o mundo, a lógica e a ética social e pessoal de um Portugal antigo, mas com a ação situada no presente. Uma narração que informa da chegada de alguém no Cabo Verde num vôo da Tap de alguma forma soa como se tivesse sido num antigo vapor.

Nas lembranças angustiadas do personagem, ele, que trabalha na loja do tio, observa fascinado pela janela uma jovem loira do outro lado da rua, por quem apaixona-se. A linda rapariga loira (Catarina Wallenstein) nos é apresentada por Oliveira como uma visão perfeita da beleza, e sua imagem traduz a descrição mais apaixonada possível que um pretendente romântico seria capaz de fazer dela. Detalhe especial da sua figura é um leque oriental, que sempre tem na mão, objeto que registra como notável fetiche estético.

O homem apaixonado, ao pedir a mão da mulher em casamento, terá de enfrentar o pensamento do tio, que não acredita que o sobrinho deverá casar-se por não ter ainda condições financeiras para arcar com uma família. Uma série de provas morais e éticas serão superadas, o que inclui pelo menos uma surpresa em relação à personalidade dessa mulher real totalmente idealizada pelo senso exacerbado de romance do personagem.

É um filme extremamente culto, repleto de detalhes fascinantes que estimulam a imaginação através da imagem pura do cinema. A perda de um chapéu segue a falência financeira do nosso personagem, as pinturas e azulejos portugueses em cena, uma seqüência elegante em som e imagem num recital de harpa, assim como alguns dos elementos mais enigmáticos do filme, como o seu plano final, estímulo à discussão e à imaginação.

Impossível não citar também o humor que pontua tudo, uma leveza que nos leva a crer que o Sr. Oliveira, 100 anos de idade, deve ser, ele mesmo, um personagem e tanto, e vai aqui um destaque especial para a forma como ele refere-se (em imagens) à sua personagem feminina. Tudo parece resultar num seguro galanteio de tempos antigos, e que funciona muito bem para os que suspeitam ser a mulher algo de indizível na sua essência, daí ser melhor apenas filmá-las.

O que impressiona na obra de Manoel de Oliveira não é apenas a preciosa nota de rodapé de que este realizador tem 100 anos, algo que por si só beira o metafísico, mas o outro fato de ele ter filmado Peculiaridades de Uma Rapariga Loira naquele mesmo mês. Ou seja, estamos no início de fevereiro, no Festival de Berlim, e o filme, rodado dois meses atrás, já está finalizado, exibido e é lindo. Há ainda uma outra informação que beira o alarmante: o próximo filme de Oliveira – O Estranho Caso de Angélica -, que ainda será filmado em tempo para Cannes (maio)...

Uma das coisas boas de Berlim é que coletivas de filmes pequenos e autorais como este têm o tom de encontros com a imprensa. No caso de Oliveira, acompanhado de seu elenco e produtores, a coisa teve o clima de um sarau. Seus colaboradores depuseram sobre o estilo do diretor, e todos parecem concordar que o filme já existe antes mesmo de ser filmado, e que todo detalhe conta.

O realizador falou do seu interesse por uma história que vê como atual. "A situação entre o tio e o sobrinho, que envolve créditos e empréstimos, é exatamente o que se passa actualmente na chamada crise financeira. O meu personagem é um homem sem crédito, fonte dos seus problemas."

Sobre seu uso esparso de música, lembrou que muitas vezes "a música é não pôr musica". "Da Vinci dizia que a musica é a constituição do invisível, e ela reflete aspectos da alma, do espírito. Naturalmente, a conversa foi para o tempo e a idade. "Idade e felicidade dependem de forças obscuras, e dependemos delas. Ao contrário dos políticos, não somos senhores do futuro e, com isso, experiência de vida não é conhecimento, é sabedoria."

Chéri


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O cineasta inglês Stephen Frears apresentou hoje Chéri (2009, Inglaterra/EUA/França), uma apresentação da Miaramax para o tipo de mercado de bom gosto e alguma sofisticação que existe raramente nos multiplex. O filme marca uma volta de Frears a uma parceria com Michelle Pfeiffer, trabalharam juntos no bom As Ligações Perigosas nos idos de 1988. Esse novo projeto (na competição) também traz de volta Christopher Hampton, roteirista que adaptou As Ligações Perigosas (do original de Choderlos de Laclos), agora trazendo os escritos da francesa Colette.

O filme é um desses dramas de época feitos com leveza e competência, os atores estão à vontade com o texto ferino, composto pelos dramas internos que levam as mulheres à mais ácida produção verbal. Se passa no mundo das cortesãs, na Paris da Belle Epoque, e Pfeiffer é Lea de Lonval, uma das mais conhecidas meretrizes de monarcas e homens de grande poder. São mulheres que se prostituem com estilo, muitas vezes secando os cofres de seus homens escravizados por elas emotiva e sexualmente. São fascinantes as cortesãs dessa época.

Chama a atenção que Pfeiffer, símbolo sexual e estrela de cinema nos anos 80 com suas maçãs de rosto perfeitas, assume o passar dos seus anos interpretando uma bela mulher que viveu da sua sensualidade, e que agora percebe a possibilidade da velhice e da aposentadoria. Talvez por isso que ela envolve-se com a carne jovem de Cheri, apelido que ela mesma deu para o rapaz quando ele tinha seis anos de idade, o filho de uma velha amiga (e também cortesã que virou maliciosa matrona), interpretada por uma esperta Kathy Bates.

Frears filma com prazer clássico em tela larga e cores perfeitamente pastel (o ás Darius Khondji garante o foco), as faíscas entre as fêmeas estalam sempre e logo estaremos envolvidos com a clássica história de amor que terá de acabar quando ele assumir uma mulher oficial, a meiga Edmée (Felicity Jones), por sua vez filha de uma outra cortesã.

É tudo muito bem feito, um passatempo de real interesse para uma sessão seguida de chá, os venenos femininos salpicam constantemente no espectador com grande interesse. Obviamente que há amargura na história de mulheres que procuram o amor sem permissão, e que tentam desesperadamente segurar a beleza que esvai-se (ou que já sumiu por completo. Que bom que a imagem final registre tão precisamente o rosto de uma mulher.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, Fevereiro 2009

Café da manhã

The Messenger


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Passou na competição ontem no Festival de Berlim o razoável The Messenger (O Mensageiro), um amerindie (filme americano com toque 'independente') que chega à Alemanha da safra mostrada no último Festival de Sundance. O filme do diretor estreante Oren Moverman (roteirista de Não Estou Lá, de Todd Haynes) enfoca um soldado americano que volta ferido do Iraque, e assume a função de notificar fria e objetivamente pais, maridos e esposas que seus entes queridos morreram. Possibilidades de prêmio não são remotas, especialmente para Woody Harrelson, que reprocessa muito bem décadas de clichês do militar duro americano.

O personagem principal é Will (Ben Foster), que volta do Iraque para a namorada que já não mais o quer, início do conceito de más notícias que o filme trabalha. Já triste, recebe a missão de, antes de dar baixa do exército, trabalhar com o oficial Tony Stone (Harrelson), um tipo hedonista que tenta administrar o alcoolismo enquanto segue rígidas regras de conduta nas notificações pessoais feitas às famílias dos soldados mortos. Eles vão de casa em casa anunciar verbalmente a morte de um parente, informação que soa como um telegrama falado, a humanidade por baixo das regras militares de conduta. Um tanto obviamente, Moverman põe a câmera tropegamente na mão em cada cena de notificação, me pergunto se para seguir regras esquemáticas de dramaticidade estudada ou se foi para deixar atores livres para pirar.

O filme parece claramente bem pesquisado. "Nunca toque na pessoa, por mais que ela desmorone emocionalmente, não faz parte da nossa função. A exceção é, claro, se a pessoa tiver um ataque cardíaco. Homens são mais difíceis de lidar, pois eles podem tentar bater em você", diz Stone para o mais jovem. Seguindo as ordens, os dois soam como droids de recado, mensageiros da morte.

Inicialmente, The Messenger vai muito bem, com um tom que soa anormalmente adulto para uma produção tipicamente amerindie. Não há música, sexo é tratado com franqueza, e cenas longas parecem mais preocupadas em respeitar os atores/personagens do que apressar tudo para manter uma idéia de ritmo.

Mesmo assim, já no final, percebemos que The Messenger tira a máscara (ou perde a vergonha de escondê-la) e mostra a estrutura pré-moldada de "buddy-movie", sub-gênero bem hollywoodiano onde dois homens se tornam os melhores amigos do mundo, e seguimos suas aventuras. A aparição repentina de Steve Buscemi como um pai que recebe más notícias reforça aspecto amerindie e tira o espectador totalmente da cena ("olha lá! Steve Buscemi!"), com a entrada de figura tão típica. A participação de Samantha Morton como uma viúva que envolve-se com o jovem militar desenvolve-se como alívio dramático, e ela é sempre um prazer de olhar.

Na coletiva de imprensa, foi o diretor Moverman que começou perguntando o que a critica tinha achado do filme, com respostas geralmente muito positivas. Ele refletiu que The Messenger talvez reflita um momento de transição política nos EUA que marca precisamente as eras Bush/Obama. "Creio que estamos mudando de uma cultura 'reativa' para uma cultura 'reflexiva'.

Sunday, February 8, 2009

'Muro' Premiado em Clermont Ferrand

Tião, cineasta pernambucano que está em Berlim participando do Talent Campus chegou do Festival Internacional de Clermont Ferrand, o maior e mais importante festival de curtas do mundo. Seu filme Muro, também premiado em Cannes, ano passado, ganhou o prêmio especial do júri em Clermont Ferrand, sábado à noite. Em Berlim, Tião participa do Berlinale Talent Campus, projeto do festival de Berlim que seleciona jovens realizadores do mundo inteiro para passar uma semana no fest participando de oficinas e interagindo com nomes de destaque do cinema mundial e, claro, vendo filmes.

'Muro' é uma produção da Trincheira Filmes (Recife), e tem como produtores associados o CinemaScópio (esse).

Chabrol Ontem



Claude Chabrol, 78 anos, apresentou seu novo pequeno deleite francês, comparável a um prato novo de um chef que você admira. Bellamy , com Gerard Depardieu, é, junto com Ricky, do outro francês (Ozon), o filme que mais gostei até aqui. Está passando fora de competição, onde o próprio Chabrol acha que alguém como ele deveria passar.

Depardieu é um investigador de polícia francês nos detalhes mais peculiares, seja na realidade ou numa idéia de cinema feito na França. A relação dele com a esposa (Mari Bunel) é a melhor possível, com uma mão boba inusitada e divertida (me lembrou o investigador e esposa de Frenesi, de Hitchcok, aqueles totalmente britânicos), espécie de bon vivant do vinho e da comida ("eu como tudo, um dos meus charmes").

Está tranquilamente às voltas com um assassinato estabelecido lindamente no plano sequência de abertura, e cuja imagem final abre espaço para uma nervosa gargalhada mórbida.

O filme segue um ritmo dos mais peculiares, risos ecoam discreta e constantemente na sala, e aos poucos, a história rocambolesca de troca de identidades vai abrindo espaço para uma outra, apresentada inicialmente como pequenos momentos de humor entre Bellamy e seu irmão mais jovem, história de rixas antigas que chegam ao filme como um segredo.

Nada mal Bellamy, vindo de um diretor colega de idade de Eastwood, o filme exibido dois dias antes do novo Oliveira.

Perguntado na coletiva, "quem o senhor acha que poderá dar continuidade ao seu cinema, sendo ele tão influente?", ele respondeu, "espero que eu mesmo dê continuidade ao meu cinema!". Oui, bien sûr!

Berlim Domingo


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Desculpem a lerdeza do blog nesses primeiros dias, a tendência é melhorar a partir de hoje. Por ter visto 6 filmes ontem e dois hoje, estou mais à vontade para escrever. Na verdade, bom lembrar que eu adoro essas coberturas de festival, especialmente Cannes e Berlim, acho que é quando eu mais tenho o prazer de escrever, e que bom que os resultados normalmente funcionam tão bem, e a resposta é sempre bem grande.

Berlim está fria hoje, 0 grau, deve nevar nos próximos dias. Eu adoro essa cidade, uma das minhas preferidas no mundo, não tem nada igual a Berlim, talvez a melhor coisa que pode-se dizer sobre cada cidade que adoramos. Ontem vi um maluco com porta-cartaz afirmando que os nazistas estão na lua. É uma coisa meio Berlim, mas bem mais festival de cinema como esse ou Cannes, vai aí postada a foto da criatura.

Quero escrever sobre a Retrospektive 70mm – Bigger Than Life, mas ainda não, depois posto, claramente uma das coisas mais bacanas que já vi num festival de cinema. Rever esses filmes nessas condições traz à tona uma série de questões essenciais para a forma como vejo o cinema, e como se vê o cinema, e que permanecem importantes sempre.

Por ser a 3a. Berlinale, estou achando o nível geral melhor do que nos dois últimos anos, quando os primeiros finais de semana me assustaram um pouco, especialmente se rola comparação obrigatória com Cannes. Ao mesmo tempo, nada de incrível, mas alguns filmes que eu gostei e outros que respeito, com dois que ... er... eu NÃO gostei.

Findo esse primeiro final de semana, é possível enxergar conexões claras entre os filmes da competição, sendo a principal delas o mundo como uma rede interligada de finanças, políticas e pessoas. Predominam narrativas poliglotas filmadas em múltiplos países. Além do thriller que abriu a Berlinale quinta-feira, o bizarramente sério (ou melhor, que leva-se a sério) The International (fora de competição), de Tom Tykwer, os destaques nesse sentido foram duas euro-produções, Storm (Tempestade), do alemão Hans Christian Schmidt, e Mammoth, do sueco Lukas Moodysson, ambas em competição.

Tem saído nas revistas de mercado como Screen International que a melhor maneira de burlar a atual crise mundial de crédito é armar um filme com múltiplas fontes de dinheiro, aspecto já disseminado no cinema internacional, e que tem atraído Hollywood.

No sábado, por exemplo, deu na Variety que o fundo regional de apoio ao cinema da cidade de Berlin, Berlin-Brandenburg, está dando 8 milhões de euros para o novo filme de Quentin Tarantino, Inglorious Basterds, um filme de guerra onde supostamente, dizem os críticos, a imagem dos alemães não será das melhores (e que deve estrear em Cannes!).

Ei, adoro Tarantino, mas estou apenas reproduzindo o que ouvi, pois seria o mesmo que o edital da Fundarpe (Pernambuco) dar sua maior fatia do orçamento a uma produção estrangeira já rica, e que provavelmente não morreria de fome. De qualquer forma, um dos ouros do cinema é exatamente esse, o crédito (seja ele na tela ou no banco), e Tarantino tem os dois créditos. O filme dele novo, aliás, foi filmado em Berlim, no Studio Babelsberg, o que faz a coisa mais interessante no sentido de co-produção.

Storm


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Sobre os dois destaques projetados no festival no final de semana, o tom multi-nacional está mais próximo de prêmios ecumênicos. A primeira coisa que pode-se dizer (positivamente) desses dois filmes meio que detona o filme do Tykwer. Por enfocarem redes (ou networks) internacionais, faz total sentido que ouçamos línguas diferentes. Uma das coisas mais belas de se viajar, e estar num tipo de estação espacial como essa, num festival de cinema, é o ataque ora delicado, ora estridente de gente falando múltiplos idiomas.

No cinema, especialmente o americano, isso é emudecido para que o inglês passe como um rolo compressor por cima de todos, beneficiando o público americano que parece tentar mentalizar o mundo como anglo-fônico. O filme de Tykwer não se esforça muito para usar as múltiplas línguas ao seu favor (poderia ser um fator curiosíssimo no filme), adotando a estética de estrangeiros que falam o inglês mais impecavelmente digitado possível, com corretor de texto, sinônimos e antônimos.

Melhor uso disso que vejo como uma ferramenta (alguém aqui viu Um Filme Falado, de Oliveira?) está em Storm e Mammoth. No sábado, passou o primeiro, falado em inglês, alemão e bósnio-croata, filme de aspecto enfadonhamente convencional, mas competente dentro disso, em especial nos meandros de um mundo regido pela política do presente como sendo mais importante do que crimes do passado. Tensões internas não são careta.

As peças do jogo são uma promotora inglesa (Kerry Fox) da corte de Haia, na Holanda, que tenta condenar um general croata por crimes de guerra, nos anos 90. O julgamento vai por água abaixo quando a principal testemunha mente. A chegada de uma segunda testemunha (a romena Ana Maria Marinca, de Quatro Meses Três Semanas e Dois Dias, excelente em três línguas), estuprada na guerra num incidente sangrento, hoje casada e morando em Berlim, transforma intimidações violentas vindas do seu país num desejo de escancarar tudo.

A tensão vem do fato de as revelações trazidas por essa mulher finalmente irem contra a vontade política que prepara o terreno para que a União Européia receba de braços abertos os países da antiga Iugoslávia, sem que lembranças desagradáveis venham pôr isso em risco. Ela terá de respeitar um acordo onde o julgamento deverá focar num outro crime de guerra, de relativa e menor intensidade, e evitar o outro, que ela sofreu com maior. É uma dessas situações absurdas que só a política e a burocracia são capazes de criar, e que ilustram bem um filme sobre a verdade pessoal e a relevância dessa verdade num panorama maior. Bem recebido.

Mammoth



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Bem menos calorosa foi a recepção de Mammoth, de Lukas Moodysson, o cineasta que atraiu admiradores com os pequenos e muito interessantes Amigas de Colégio (Fucking Amal!), Benvindos (Together) e Para Sempre Lylia (Lylia 4Ever). Ele foi para o lado negro da força com duas obras “experimentais” (na falta de palavra mais educada), A Hole in the Heart e Container, e volta agora com esse paquiderme de tamanho médio, fazendo o titulo Mammoth soar algo de pretensioso.

Gael Garcia Bernal não é o único motivo que fez a palavra “Babel!” ecoar pela multidão de críticos que deixava a sessão no final, uma vez que a comparação é bem óbvia. Como o filme do mexicano Alejandro EuMeIrrito-Iñarritu, esse também tem Bernal, e entrecorta cenas em múltiplos países. Algo de Lost in Translation também é sentido, e durante a primeira metade o espectador assiste com algum interesse.

Há um bom coração de Moodysson para com seus personagens. A personagem médica de Michelle Williams é casada com o empresário de games de Bernal no filme, que viaja para Bangkok a serviço. Eles têm uma filha que desenvolve grande afeição pela empregada filipina da família, que deixou os dois filhos com a avó do outro lado do mundo. Todos são minimamente interessantes, e, pelo menos para mim, isso não deve ser ignorado.

Com nossa dieta diária/semanal de filmes americanos com visão restritíssima de mundo externo (extra-EUA), onde o estrangeiro é sempre visto de cima para baixo, ou sinônimo de vilão fumante, gente estranha ou feia, um panorama humano como o de Moodysson tem o seu valor.

A filha do casal se apega à empregada, e não apenas isso, ela se interessa pela cultura da mulher, inclusive pela língua. A mãe relaciona-se bem com isso, e quando acha problemático, não é uma questão de rejeição ao estrangeiro, mas pelo ciúme natural materno associado à sua vida profissional que lhe deixa pouco tempo para fazer as coisas que deveria fazer com a filha. O personagem de Bernal, diferente do seu parceiro de business, parece realmente interessado pela viagem que está fazendo (o aspecto Lost in Translation do filme), tendo que lidar com questões éticas pessoais ao longo dessa viagem, todas elas do bem.

É claro que ao final o filme desmorona, especialmente (e ironicamente) do ponto de vista emotivo. Afunda num poço de sentimentalismo, o uso de música (Moodysson repete de maneira infeliz no contexto do festival Cat Power e sua canção The Greatest, também usada como tema em Ricky, de Ozon) resvala para o solene no último rolo, piorando tudo. Juntando o tal bom coração, efeito déja vu paralisante e sensação de tempo não muito saudável, logo temos a sensação de estarmos vendo o lento enterro de um simpático elefante. Uma pena.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, fevereiro 2009

Rage, de Sally Potter


(Jude Law)

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Curioso como Mammoth é um fracasso dentro de normas convencionais, mas vejam o caso de Rage, filme de Sally Potter, brodagem de Tilda Swinton em Orlando (nossa presidente do júri agora, em Berlim) e que aparece com um curioso descansa tela que está, UAU!, na competição, seleção pouco razoável esta. Será difícil aparecer um outro objeto como esse até o próximo dia 15. De qualquer forma, se é para provocar, faça com estilo, imagino. É também aquele tipo de filme cuja coletiva soa bem mais interessante do que o mesmo.

Exibido em vídeo digital, Rage é uma produção inglesa composta por “talking torsos” de personagens fictícios interpretados por atores, alguns astros e estrelas (Judi Dench uma fashion critic, Steve Buscemi faz Steve Buscemi que se diz fotógrafo, Jude Law um travesti que atende pelo nome Onyx, talvez o aspecto mais rentável para a galera cult). Eles falam uma infinidade de lugares comuns sobre celebridade, fama, moda, imagens, ego e tudo mais, e o fundo é multi-colorido (verde, azul, vermelho, amarelo, laranja, cian) que, felizmente, fica mudando.

A sensação de estarmos vendo alguma fita bruta roubada do E! Entertainment Television (sem música tecno e montagem picada). Sensação persiste durante a enlouquecedora duração (99 minutos), e o filme é sádico o suficiente para ser dividido em capítulos que inevitavelmente arrancam aplausos ao chegar ao anuncio do último. Há uma idéia de que o realizador que nunca é visto (atrás da câmera) é uma criança com o poder de fazer tanta gente louca se abrir na frente da sua lente.

Na melhor das hipóteses, Rage ficaria melhor na parede de um bar, onde o matraqueado seria substituído por música ambiente, a maior fonte de interesse o fundo que troca de cor lindamente. So fucking Boring.

Filme visto no Cinemaxx 9, Berlim, Fevereiro 2009

Friday, February 6, 2009

O Leitor


Por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Passou também ontem fora de competição O Leitor (The Reader), filme de Stephen Daldry (Billy Elliot) que já está em exibição no Brasil como parte do pacote Oscar 2009. Na coletiva de imprensa, ontem à tarde, com a presença de Daldry, Kate Winslet, Ralph Fiennes, do jovem ator alemão David Kross e do autor do livro do qual o filme foi adaptado, Bernhard Schlink, Daldry tentou apresentar O Leitor não como "mais um filme sobre o Holocausto, mas sobre toda uma geração alemã que foi impactada pela herança sombria deixada pelos nazistas. "A maioria dos filmes sobre o Holocausto tem o ponto de vista da vítima, e o que me atraiu a essa história é que a personagem é um dos culpados."

Winslet não fugiu de perguntas sobre as cenas de sexo entre ela e Kross. No filme, ela foi integrante da SS num campo de concentração, e relaciona-se com um adolescente de 15 anos nos anos 50, sem que ele saiba do seu passado. "Não é algo que eu goste de fazer, mas faz parte da história. Li o livro seis anos atrás e me vi inspirada pelo amor entre os dois, é uma história de amor. Por isso, quando vejo coerência, eu vou lá e simplesmente faço".

Perguntada sobre a repercussão que esse tipo de cena tem na mídia puritana, Kate comentoiu que "basta você entender que as coisas são assim, o mundo é assim. Uu não leio críticas, entrevistas que eu dei ou matérias sobre celebridade, não temos nada de imprensa na minha casa. Atuar é uma paixão minha, e só é possível exercer isso com a cabeça aberta".

Fiennes explicou que é muito bom poder interpretar a segunda parte de um personagem (ele faz o personagem de Kross mais velho), pois normalmente você, como ator, precisa imaginar, criar, o passado de quem está interpretando. Nesse caso, estava tudo pronto, e ver as cenas com Kross me ajudou muito".

Ricky


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O realizador francês François Ozon está com um filme na competição do Festival de Berlim, chama-se Ricky, e é sobre um bebê. É provável que o leitor venha a descobrir o grande segredo do filme bem antes de Ricky chegar ao Brasil, mas não será por aqui. Acreditamos que certas descobertas (apelidados de "spoilers" no jargão da internet) devem ser feitas na sala de cinema, e não na imprensa. Segredos como esse em Ricky são raros, e fazem parte da própria construção do filme, feito por um realizador que parece ter o prazer de testar novos caminhos ao longo da sua carreira.

Ricky é o décimo longa metragem desse realizador de 41 anos. Cada filme de François Ozon divide bastante crítica e público, e o conjunto da obra revela-se uma virtual pesquisa de tons, estilos e atmosferas. Suspeitamos que esse talvez revele-se seu filme mais bem sucedido junto ao público.

Ricky deixou a imprensa por vezes incrédula no que estava vendo, e finalmente encantada com esse filme pequeno que começa como um drama realista ambientado num subúrbio parisiense (apartamento pequeno de classe média baixa). A mãe (Alexandra Lamy) é solteira e operária, a filha de sete anos Lisa (Mélusine Mayance, provavelmente a personagem mais discretamente forte do filme) é solitária, e vê com dissabor a chegada de um namorado da sua mãe, o espanhol Paco (Sergi Lopez).

A união gera uma gravidez, e logo Lisa terá companhia na forma de um bebê, Ricky, criatura que Ozon filma com a honestidade que bebês merecem, sem precisar carregar no quesito fofura que eles inevitavelmente têm. Também não poupa os detalhes mais sujos que essas coisinhas inevitavelmente produzem, e logo o espectador está totalmente envolvido, especialmente via olhar cético da irmã. Natural e progressivamente, Lisa perde o espaço para o recém chegado Ricky.

Aos poucos, no entanto, Ricky revela-se uma criança especialíssima, e o filme, crônica socialmente realista típica do cinema francês, toma rumos inesperados que ora lembram David Cronenberg, ora Walt Disney, com pitadas de uma fábula de Hans Christian Andersen.

Reações dos pais, de Lisa e, finalmente, da sociedade como um todo, permanecem totalmente criveis, e Ricky termina passando como o relato verdadeiro e bem narrado de uma história fantástica publicada num jornal sensacionalista, ou seja, algo realmente inusitado.

O filme é tão equilibrado na sua união de cinemas diferentes que o espectador tem a clara sensação de que uma certa idéia de Hollywood (o cinema fantástico, os efeitos especiais digitais) foi morar num apartamento cinzento de um subúrbio trabalhador francês.

Há algo de muito forte nessa mistura, pois Ozon lida aqui com a questão da identidade cultural de todo um cinema. O mercado nos ensinou a ver (e a esperar) que certas coisas simplesmente acontecem num determinado tipo de filme, mas que nunca ocorrem em outros tipos de cinema. Por mais que E.T. e Poltergeist, ambos da fábrica Spielberg, tenham nas suas bases um certo realismo, suburbano seus desdobramentos fazem parte de uma cultura de cinema (a americana) onde o fantástico já é esperado. Na verdade, é praticamente a norma.

Ozon quebra isso lindamente com o seu Ricky de dentro de uma idéia de estabelecida cinema francês. Sobra ainda um final inspirado que poderá nos levar em direção a um diretor que é capaz de deixar abertas portas para a visão emotiva de mundo apenas possível dentro do olhar de uma criança. Super bom.

Ontem, Ozon recebeu a reportagem do JC para uma entrevista no hotel Marriott, em Potsdamer Platz, onde nos falou sobre seu interesse em investigar diferentes gêneros. "Eu não escolho filmes tão diferentes entre si de maneira consciente, mas talvez escolha detalhes desses filmes seguindo instintos meus. E acho que alguns desses instintos são ligeiramente perversos, não tenho nenhum problema em afirmar isso!"

Filme visto em Berlim, fevereiro 2009

Thursday, February 5, 2009

The International





Olhos em Berlim

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O 59o. Festival Internacional de Berlim começou ontem sob dois fatores particulares à Alemanha. Lembranças da queda do Muro de Berlim, que em 2009 completa 20 anos, estão prometidas para todo o festival, e a comemoração de números excelentes para produções locais com a conquista de 27% do mercado de cinema. Ao longo do último ano, 129 milhões de espectadores foram aos kinos alemães. Para combinar, o filme de abertura, The International, do alemão Tom Tykwer, é uma produção multinacional, com dinheiro americano e germânico, ironicamente um filme onde os vilões são banqueiros.

Esse leve divertimento em formato de thriller conspiratório tem um aspecto curiosamente factual. Obviamente, Tykwer, que vem trabalhando no projeto há mais de quatro anos, explicou na coletiva de imprensa que tudo não passa de uma coincidência se o filme nos remete à crise financeira mundial originada na questão do crédito, fator claro e evidente já no início da projeção. "A crise é catastrófica, claro, mas para tentar tirar algo de positivo dela, talvez o público de cinema esteja mais ciente sobre os caminhos do poder no mundo de hoje", ponderou.

No filme, guerras e terrorismo são financiados por uma instituição financeira inescrupulosa com sede em Luxemburgo que banca guerras e o terrorismo. O modelo de negócio deles parece consistente com o do mundo real, que é negociar (ou fornecer crédito) para quem puder pagar, estimulando pequenas guerras e grandes conflitos. Os que tentam enfrentá-los, morrem misteriosamente em acidentes e assassinatos que os grandes poderes não tem muito interesse em esclarecer.

Até que entra o herói da história, um policial inglês (Clive Owen) trabalhando para a Interpol que acredita em fazer o bem para a humanidade, aliado sem nenhum motivo forte o suficiente a Naomi Watts, exceto talvez pela idéia de que os dois fazem um bom par. (química ausente entre os dois, aliás) Ela trabalha na justiça em Nova Iorque, investigando venda de armas no exterior, e o papel de Watts resulta no tipo de trabalho que atores, assim como os banqueiros do filme, fazem estritamente pelo dinheiro.

The International assobia e olha para cima como se a franquia A Identidade Bourne não existisse, talvez pelo fato de aqueles filmes de fato funcionarem bem como exercícios de cinema de gênero, atualizando a idéia de "thriller de espionagem". Nesse sentido, Tykwer parece levar cada uma das suas cenas como coisa séria, sem que ninguém tenha lhe alertado que o material é nada mais do que uma fórmula já tão gasta. Precisaria de alguém com visão, humor e até mesmo um pouco de saudável desdém para dar alguma energia a esse tipo de coisa.

Há uma cena, no entanto, digna de nota, um (improvável) tiroteiro no Museu Guggenheim de Nova York que poderá deixar alguns espectadores aflitos sobre a integridade física do acervo e, em especial, da arquitetura de Frank Lloyd Wright.

Tykwer, que firmou-se na Alemanha com filmes pequenos (Corra Lola Corra é o mais conhecido), entrou de cabeça em euro-produções faladas em inglês (Paraíso, O Perfume), e agora chega a The International, um filme realmente internacional. Faz o tipo de cinema consumista altamente industrializado que esperaríamos de um cineasta germânico globalizado do ano 2000, e esse seu primeiro produto de estúdio (Columbia/Sony) filmado em Berlim, Istanbul, Lyon, Nova York, Luxemburgo e Milão resulta num passatempo descartável que, de qualquer forma, poderá ter carreira comercial ok.

SUCESSOS - The International será o próximo grande lançamento alemão nas salas do país (12 de fevereiro), e deverá dar continuidade ao bom momento da produção local. Sucessos como Der Baader-Meinhof Komplex (indicado ao Oscar 2009) e o recente Keinohrhasen (Coelho Sem Orelhas), uma comédia, (quase cinco milhões de espectadores, 50 milhões de euros nas bilheterias), ajudaram o cinema alemão a chegar à maior porcentagem de ocupação das salas nacionais contra o produto de Hollywood desde 1991, número de difícil alcance no Brasil.

Wednesday, February 4, 2009

Berlim 2009


Chegando em Berlim (Táxi).

Pelo 3o. ano, faço cobertura da Berlinale para o Jornal do Commercio, com apoio do Consulado Alemão no Recife e Centro Cultural Brasil-Alemanha.

Atualizações constantes no blog.

Tuesday, February 3, 2009

Yes Man



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Engraçado como os dois lançamentos hollywoodianos da semana se comunicam, de certa forma. Tanto em Foi Tudo um Sonho (Revolutionary Road) como em Sim Senhor (Yes Man, EUA, 2008), os personagens partem para mudar de vida, infelizes com o estado de coisas e com a forma como se relacionam com o mundo em volta. Se no primeiro, um drama barrinha pesada, eles não conseguem, no segundo, uma comédia "pra cima" das mais simpáticas tudo corre bem. Curiosamente, Kate Winslet (em Foi Tudo um Sonho) e Jim Carrey (Sim Senhor) estiveram juntos em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, outra parábola sobre melhorar e mudar, meio do caminho entre os dois filmes.

Nesse novo filme de Jim Carrey, que o marketing nos levou a crer que seria tão pavoroso quanto O Mentiroso (Liar Liar), o interessante ator e comediante faz Frank, um bancário emocionalmente negativo, flagelo masculino que ainda sofre com o fim do seu casamento, anos antes. "Não" é a palavra chave da sua vida, "não" para o cara que distribui panfletos na rua, "não" para sair com os amigos que já estão desistindo dele, "não" para os clientes que vêm pedir empréstimos no banco. Imagino que "não" também para filmes como este, pois Frank é tão negativo que o seu tipo de filme antes do make over é Jogos Mortais e 300.

Como geralmente ocorre nesse tipo de coisa, ele encontra um velho conhecido que irá apresentá-lo aos prazeres do "sim!", levando-o a uma dessas palestras assustadoras de auto-ajuda, com platéia de centenas, em sala de convenções de algum hotel, que repete aos gritos mantras que chamam a mudança e explicam o segredo de viver. O ator inglês figura Terrence Stamp é o mestre do "sim", convencendo Frank a adotar a palavra de três letras que rima com tim-tim.

E lá vai Frank dizendo "sim", inicialmente a um sem teto que mora longe e no mato (o plano do homem emburacando nas brenhas é uma jóia de mau gosto), e que usa o celular de Frank até esgotar a bateria. Eis que quem planta colhe, pois os frutos desse primeiro "sim" levam Frank, sem celular e sem gasolina, a um posto, onde encontra a adorável figurinha Allison (Zooey Deschanel, espécie de gracinha número 1 do cinema ocidental), o início de um agradável romance.

O filme revela-se gracioso para com o bombardeio social e comercial diário que tenta nos levar a dizer "sim" (vírus de PC incluídos), seja verbalmente ou apenas clicando o computador, armadilhas que aprendemos com o tempo a resvalar em direção a uma quantidade realmente assustadora de "nãos".

A resignação de Frank rumo ao "sim" o leva a dois dos momentos mais grotescos do filme, e que se destacam feito dois dedos no olho. No primeiro, ele aparece com uma pretendente iraniana, tratada pelo filme como bichinho do mato que merece o tipo de achincalhe bem americano em relação a todas as coisas estrangeiras (ou de raiz muçulmana). O segundo envolve a vizinha idosa (e fogosa), e há uma piada fim da picada com, claro, próteses dentárias.

Felizmente, o filme é melhor do que esse tipo de coisa, e há um aspecto irônico de interesse. À frente dos empréstimos e trabalhando com crédito no banco, Frank evita no seu processo de vida pré-"sim" o seu chefe abiscoitado (é fã de Harry Potter) e, no contato com o público, passa a dizer "sim" sempre para micro-empresários ou alegres consumistas, o que talvez explique o tipo de crise mundial de crédito que nasceu nos EUA, "o crédito mais fácil do mundo". A piada funciona e lembra a outra piada política (esta consciente) de As Loucuras de Dick e Jane (sobre rombo em fundos de pensão).

Filme visto no UCI Ribeiro, Janeiro 2009, Recife

Revolutionary Road


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Os envolvidos com Foi Tudo um Sonho (Revolutionary Road, EUA/Inglaterra, 2008), sobre o naufrágio de um casamento, mostram-se muito bem casados, de certa forma, extra-filme. Leonardo di Caprio e Kate Winslet estiveram juntos há 12 anos em Titanic, sobre o afundamento literal de um navio. Winslet, que atuou num filme não muito diferente, Pecados Íntimos (Little Children), é casada com o diretor deste filme novo, Sam Mendes, que também freqüentou esse tipo de mal estar no seu super estimado Beleza Americana (1999). Foi Tudo um Sonho, que estréia hoje, tem três indicações ao Oscar, Figurino, Direção de Arte e Ator Coadjuvante para Michael Shannon.

Mendes (é inglês) vem do teatro, o que talvez explique sua queda pelo frufru em cena. Seu Beleza Americana ganhou cinco Oscars tratando seus personagens desesperados como bonecos de vudu, tudo muito cínico e afetado, com ornamentos de rosas vermelhas aqui e ali. Para quem queria mais afetação ainda, seu filme seguinte foi um banquete, Estrada Para Perdição (2002), adaptação de uma história em quadrinhos sobre um matador. Seu terceiro filme, Jarhead (2006), uma coleção de clichês superficiais sobre a guerra (no caso, do Kwait) que não ia, nem vinha.

Isso talvez faça de Foi Tudo um Sonho o seu melhor filme, até agora, o que talvez não diga muito sobre o filme, ou sobre o toque Mendes. De qualquer forma, ele parece melhorar o olhar sobre as pessoas no mesmo tipo de ambiente suburbano filmado em Beleza Americana. Há uma diferença, no entanto, um outro tempo. Será que Hollywood se solta mais ao distanciar-se da realidade e do tempo imediatos?

Estamos nos anos 50, década marcada pela idéia projetada de felicidade nos subúrbios americanos do pós-guerra, as chamadas "famílias nucleares" eletrodomésticas, limpeza total e um ar de felicidade de comercial de detergente. E todos fumam como se não houvesse amanhã.

Pela primeira vez, as atenções redobradas de Mendes para a decoração encontram eco nos conflitos humanos. April e Frank Wheeler (Winslet e DiCaprio) se conhecem numa festa novaiorquina, e ambos se descobrem como pessoas especiais. Os planos futuros de ela tentar uma carreira de atriz são imediatamente destruídos na cena seguinte, com o fracasso de uma peça de grupo amador de teatro onde ela tinha o papel principal. Esse fracasso é significativo, negando todas as possibilidades do sonho americano, seja em relação à celebridade, do bem sucedido, o constrangimento se ser uma perdedora.

Enquanto April preenche desconfortavelmente suas funções de mulher do lar, mãe de dois filhos (que o filme esquece totalmente de desenvolver, as crianças são nulidades presentes), Frank vê-se seguindo os passos do pai, um zangão anônimo que trabalhou numa grande empresa de equipamentos de escritório, em Manhattan. Ele detesta o mesmo trabalho e, talvez como forma de melhorar o ânimo de suas atividades no trabalho, passa a flertar fisicamente com uma das secretárias (Zoe Kazan, neta do cineasta Elia Kazan).

Proprietários de uma casinha branca na Rua Revolutionary, os dois são vistos com admiração/inveja no convívio social, embora saibam intimamente que talvez sejam "o melhor dos iguais". Desesperada por uma saída rumo à felicidade, April inventa um plano mirabolante de fuga que os levará a morar em Paris, onde Frank terá todo o tempo do mundo "para se achar", enquanto ela passará a ser a provedora.

Talvez seja o segmento mais discretamente triste do filme, quando o casal liga os motores para a fuga, com Paris em mente, verdadeiro ato de revolução pessoal que irá causar enorme desconforto nos amigos mais próximos. Tal ato é exatamente o que muitos gostariam de fazer, e não farão nunca, e essa psicologia do casal amigo é muito típica nas relações humanas, o distúrbio via reflexo de você mesmo.

Em meio a desdobramentos que cheiram realistas para com a vida prática versus vida sonhada, surge o personagem de um louco (Shannon, tão bom em Bug, e que Hollywood decidiu que sempre interpretará malucos), o filho problemático da corretora imobiliária dos Wheeler (Kathy Bates, perfeitamente matrona), sobrevivente de 37 sessões de eletrochoque. Problemático, aliás, é pouco, o caba é uma lapa de doido que só existe em filmes como esse, o doido 24 horas para o roteiro, grilo falante da moral sugerida, e que Shannon parece resignado em fazer, quem viu Bug sabe que ele faz bem (sua participação em World Trade Center deprimente, de outra forma).

Esse personagem, John, na verdade, parece incorporar repentinamente o roteirista, explicando tudo o que nós já estávamos entendendo sobre o casal em crise. É dele a frase mais impactante do filme, "muita gente vê o vazio, mas é preciso coragem para ver a total falta de esperança", perfeita para citar em textos como esse.

Não é exatamente um filme alegre, e não poderia ser. Mendes orquestra sua inhaca humana que sustenta-se bem na capacidade de vermos April e Frank como gente, e os dois atores parecem totalmente sincronizados nesse sentido. Se Winslet acrescenta peso só de estar respirando em cena, DiCaprio parece existir em três frentes distintas: macho de corte antigo na empresa, pai de família apaixonado e salva vidas frustrado do próprio casamento, sem sair-se bem em nenhuma das frentes.

Curiosamente, o segmento final soa desnecessário, acrescenta peso ao que já estava se equilibrando fragilmente, adquirindo o tom insuspeito até então de um novelão, piorado por uma cena final que Mendes parece ter resgatado dos arquivos de Beleza Americana. V

A imagem assinatura deste filme, no entanto, acontece bem antes, e poderá ilustrar a reação de casais casados, andando calados num longo corredor (de shopping), em direção ao carro novo da família.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

Austrália


KIDMAN! JACKMAN! (e aborígene)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Por motivos misteriosos, Austrália (EUA/Austrália, 2008), novo filme de Baz Luhrman, foi maltratado nos EUA, onde atraiu reação negativa junto à crítica, nas bilheterias, sem conquistar também a atenção dos prêmios de prestígio da atual temporada, como Globos de Ouro e Oscar, com uma indicação apenas (Figurino), divulgada ontem, o que meio que dificulta sua carreira no Brasil.

É tudo uma questão de vento, sorte e mandinga, creio, pois não há nada no filme que nos leve a crer que ele deveria ser menos valorizado pela indústria do que o elefante branco O Curioso Caso de Benjamin Button, que está com 13 indicações. O filme de Luhrman lembra uma matinê antiga com tom de antiquário e brechó, e é certamente o bicho esquisito no cinemão de mercado atual.

Esse diretor australiano nos deu música, cores e movimento em Vem Dançar Comigo, Romeu + Julieta e Moulin Rouge, sua chamada "trilogia da cortina vermelha". Muda o foco para fazer um filme caro em tela larga sobre o seu país, com dinheiro hollywoodiano e do próprio governo australiano, que promete devolver à 20th Century Fox o que o estúdio venha perder caso o filme não se pague.

À frente das suas preocupações estão não apenas uma clara e evidente "taxa de paisagem" para satisfazer os burocratas, mas também a tentativa de exorcizar atrocidades sociais que fizeram parte natural da sociedade australiana até os anos 1970: o racismo grotesco que separou australianos brancos dos aborígenes, os nativos do país, tema abordado há alguns anos por um outro cineasta australiano, Philip Noyce, em Geração Roubada (Rabbit Proof Fence, 2002). E olha que não é uma ironia que um dos cartazes de Austrália mostre KIDMAN e JACKMAN bem grandes, e ali miniaturizado embaixo o pequeno aborígene...

Luhrman, no entanto, usa um painel de "grande aventura", e quem conhece mesmo que um pouco do cinema australiano, sabe que o país continental de clima tropical fotografa muito bem em Panavision, sua identidade visual semelhante ao do western clássico americano, seja em dramas intimistas como Picnic na Montanha Misteriosa (1975) e Gallipoli (1981), de Peter Weir, ou na trilogia Mad Max, de George Miller.

Essa identidade emprestada do cinema americano (vistas largas, secas, desérticas) ganha personalidade na iconografia local marcada por cangurus, camelos, coalas, bumerangues e, especialmente, pelo inglês colorido dos australianos, seja em sotaque ou palavreado.

Os heróis são Drover (Hugh Jackman) e Lady Ashley (Nicole Kidman), ele um caubói australiano de corte Crocodile Dundee (um filme bem melhor, e mais engraçado), ela uma aristocrata inglesa que vem resolver problemas de terra que parecem estar consumindo o seu marido. Proprietários de uma enorme fazenda cobiçada pelo maior empresário do país, King Carney (Bryan Brown), ela chega à localidade remota para encontrar o marido assassinado, a culpa jogada num mestre aborígene, avô de uma criança mestiça chamada Nulla, criada na fazenda.

Começando com um clima desagradável de Indiana Jones e o Tempo da Perdição, ele o macho áspero, ela cheia de frescura esganiçada, aos poucos o filme vai conquistando a atenção durante a perigosa viagem que levará cerca de duas mil cabeças de gado digital em direção à cidade de Darwin, na costa norte da Austrália, viagem de mais de mil quilômetros. Para atrapalhar a aventura e proteger os interesses do tirano Carney, capangas tentam sabotar a marcha, a parte mais aventuresca do filme.

A informação de que Drover foi, no passado, casado com uma aborígene impressiona menos do que se de fato víssemos esse herói branco australiano em relação amorosa com nativa, mas, ao invés disso, ele faz par mesmo com Nicole Kidman, cuja Lady Ashley rapidamente torna-se mulher rochedo, uma micro-Scarlett O'hara ativista de Ong do ano 2000 para as causas humanitárias da década de 40. E diverte.

O filme parece ter um problema claro e evidente. A marcha com o gado prende a atenção, utilizando todo tipo de imagem clássica do cinema americano e australiano do passado (dos já citados a Walkabout, de Nicolas Roeg, especialmente), e o feito é empolgante o suficiente para que o espectador pense que o filme acabou uma vez alcançada a meta.

No entanto, eis que tudo recomeça, dando ao todo um ar de mini-série em três capítulos, pois a última parte, sobre o ataque japonês a Darwin no pós-Pearl Harbor, em 1941, dá um reset no filme, infelizmente o segmento menos interessante, enorme barriga que leva tudo aos 160 minutos de projeção. Há falsos finais infelizes que não enganam ninguém, mas que tomam tempo e metragem.

Uma outra coisa, e que me chama a atenção. Se um filme desse porte, com orçamento de 130 milhões $ ainda precisa enfiar o pé na jaca nos efeitos digitais, criando uma sensação de interrupção no estilo e fluência das suas imagens caras, qual o filme que poderá ser filmado "à moda antga", e que caberia bem à idéia de Luhrman de fazer "uma aventura à moda antiga?" Tendo visto Benjamin Button e Austrália tão manipulados, bate sensação de desdém para com a coisa do digital. O problema não parece exatamente o uso do digital, mas a salada maluca de realismo e artifício.

Mesmo assim, a minha boa vontade me faz ver aqui um filme certamente curioso. O sucesso constante dos filmes anteriores de Luhrman lhe permitiu fazer esse filme autoral sobre seu país, obra de saudável bairrismo que pode não ter deixado o mercado americano muito interessado. A capacidade que esse diretor tem de mixar o passado do cinema numa obra nova com tom de milk-shake nunca deixa de ser interessante (especial piscada de olho para O Mágico de Oz, e Oz é apelido australiano para o país, vale saber), num filme largo que traz a paisagem real entrecortada com imagens digitais que revelam o momento exato de realização. Pode envelhecer mal.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009.

Quien Dice Que És Fácil?


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma das qualidades mais interessantes do que entendemos por "cinema argentino" é a sua capacidade de ser pequeno, ou talvez adequadamente dimensionado às suas necessidades, algo que filmes brasileiros, em geral, ainda não parecem ter observado. Mesmo em esforços não tão bem sucedidos como Quem Disse Que é Fácil (Quien Dice Que És Fácil?, Argentina/Espanha, 2007), filme de Juan Taratuto, percebe-se uma honestidade, nem que seja equivocada.

É a história de um trintão que ainda não amadureceu emocionalmente, tem uma vaga idéia do que mulheres significam e que apaixona-se pela sua inquilina, também sua vizinha, uma fotógrafa. Atraente, livre perante a vida e grávida, essa artista terá de acertar os ponteiros com esse homem imaturo, conservador e sexualmente inexperiente para, talvez, firmarem parceria para toda a vida, proposta que torna-se cada vez mais difícil de crer depois de um início promissor.

Há toques curiosos relacionados à sexualidade, à feminilidade, às diferentes tribos sociais ('caretas' e 'alternativos') e aos pormenores de contratos de locação para pequenos apartamentos. No entanto, Taratuto parece perder seu filme de vista rumo ao final, claramente tomado pela emoção paralisante de estar filmando uma história pessoal, transformando a chegada de um bebê numa homenagem brega à vida e às diferenças que existem no amor. Boas intenções, resultados decepcionantes com tendência ao horrível.

Filme visto no Cinema Rosa e Silva, janeiro 2009

Lemon Tree


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Vendo a produção multinacional (Alemanha, França, Israel) Lemmon Tree (Etz Limon, 2008), dirigido pelo israelense Eran Riklis com olhar claramente pró-palestino, talvez seja possível não apenas entrar um pouco mais nos conflitos tão divulgados que dividem muçulmanos de judeus, mas também pensar em alguns dos nossos. A imagem principal desse filme é a linha reta que divide, e que aqui ganha as formas de muros e cercas.

A incursão ultra-violenta que deixou mais de mil palestinos mortos ao longo do último mês na Faixa de Gaza dá relevância factual a Lemon Tree, exibido no Festival de Berlim do ano passado. Curiosamente, as citações a mísseis do Hezbollah e frases como "Israel às vezes passa dos limites" passam a sensação de que o filme foi finalizado duas semanas atrás.

Lemmon Tree (lançado no Brasil com esse título, literalmente "Limoeiro") utiliza um pequeno incidente doméstico em tom de fábula para ilustrar uma situação cujas linhas gerais o mundo já conhece relativamente bem. O governo de Israel decide derrubar os pés de limoeiro que pertencem a uma viúva palestina. Os militares decretam o pomar de Salma Zidane (Hiam Abbass, boa presença) uma ameaça à segurança do novo ministro da defesa, Israel Navon (Doron Tavory, milico asqueroso), cuja nova residência é vizinha da solitária viúva.

Seus limoeiros foram plantados pelo seu pai e, durante 40 anos, sustentaram a pequena economia da sua família. Ameaçados com o corte sumário (mais simpática indenização), as árvores oferecem, em teoria, proteção e disfarce para inimigos do estado contra o ministro e sua esposa, Mira (Rona Lipaz Michael), uma arquiteta, ela mesma sempre às voltas com linhas retas na tela do seu computador e em projetos plotados.

Sob uma camada espessa de "world cinema" edificante, Lemmon Tree revela-se aos poucos uma fábula de interesse, clássico arquétipo de Davi e Golias. Não há aqui a ironia cortante de um Elia Suleiman (do excelente Intervenção Divina, um dos melhores filmes desta década), cineasta palestino que não poupa os dois lados, mas também não há o equilíbrio internacionalmente calculado de Paradise Now. O ponto de vista é claramente a favor da personagem palestina, mulher que parece ter se recusado, ao longo de toda a sua vida, a falar hebraico, a língua dos seus vizinhos de cerca.

Com a ajuda de Ziad, um advogado (Ali Suliman, um dos homens bomba de Paradise Now), ela irá lutar na justiça contra Israel para manter o direito de ter o seu pomar, luta que o filme transforma em cenas rápidas e pouco espetaculares de tribunal, levando Salma e Ziad à última instância da suprema corte. Isso irá atrair a atenção da mídia internacional, a simpatia de governos estrangeiros e a um racha entre o ministro e sua esposa, ela uma espécie de eixo moral imparcial da história.

Nada mais simbólico que rupturas ocorram. Riklis, durante todo o filme, não economiza nas imagens de mecanismos de separação: as novas cercas de arame que separam o pomar da casa do ministro, o chamado Muro de Israel no West Bank (registrado em vídeo com tons documentais), check-points e novos muros erguidos para deixar as duas partes ainda mais distantes.

É o segundo comentário pessimista filmado via israelenses da safra 2008 a mostrar algum senso crítico sobre Israel e suas atitudes político-brutalizantes, o outro o notável Waltz With Bashir, de Ari Folman, que ganhou o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro e que acaba de ser indicado (ontem) ao Oscar de Filme Estrangeiro.

Para brasileiros, Lemmon Tree também pode nos levar a lembrar que um outro conjunto de ferramentas históricas e políticas nos fazem viver com uma quantidade também espetacular de cercas e muros, divisórias ora cruéis, ora apenas ridículas do medo que separa as muitas classes que fazem o Brasil. É o cinema falando dos outros, mas, de certa forma, de nós mesmos.

Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, janeiro 2009

The Curious Case of Benjamin Button


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


« A vida não é medida em minutos, mas em momentos », diz o slogan de cartão de crédito utilizado no cartaz de O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, EUA, 2008). O filme de David Fincher nos apresenta a história de um homem (Brad Pitt) que nasce velho e morre bebê depois de viver cerca de 80 anos na contramão do processo natural de todos os que ele conheceu e amou. É um dos filmes de prestígio e qualidade que aparecem como surto nessa época do ano, feito para deixar o grosso das platéias nos cinemas comerciais saindo pensativas até chegarem ao quiosque do shopping para pagar o estacionamento.

São 160 minutos dos mais ilustrativos, como se Fincher partisse para explicar, tim tim por tim tim, a imagem final da « criança estelar » de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, crente de que não deixará uma pergunta que seja sem resposta. O filme incha com grande pompa o conto de F. Scott Fitzgerald, originalmente publicado na coletânea Tales of the Jazz Age.

Vendo O Curioso Caso de Benjamin Button ser empurrado ladeira acima por Fincher e equipe técnica das mais capazes, nos chama a atenção uma das questões mais importantes dos que procuram na arte (teatro, música, dança, cinema…) algo que de fato nos intrigue, nos deixe mudados após nossa exposição à criação. Há uma diferença importante entre pensar e mostrar, e o filme de Fincher passa mais como um álbum de fotografias que, na pior das hipóteses, nós já esperávamos ver, da primeira à última foto.

O eixo existencialista do filme é uma história de amor entre o personagem titular e uma mulher chamada Daisy (Cate Blanchett, seu rosto e corpo indo dos 23 aos 80), ambos com mais ou menos a mesma idade, nascidos no pós-1a. Guerra Mundial em Nova Orleans. Button herda a fortuna do pai, Daisy torna-se uma bailarina que chega a dançar com o Bolshoi.

A grande tensão aqui vem do fato de ele, aos cinco anos de idade, ter a aparência de um diminuto nonagenário em cadeira de rodas, trabalho de caracterização e efeitos especiais interessantíssimo. Além de Pitt estar sob perfeita maquiagem, seu corpo ainda foi diminuído digitalmente, dando-lhe a aparência de um Yoda infantil, e o efeito é muito convincente (e estranho).

Todos nós sabemos que a idade avançada faz os idosos recuperar traços e tons infantis, mas o filme transforma isso numa imagem e tanto, parte das preocupações do realismo extremo perseguido por Fincher na sua carreira, na sua crença de que mostrar talvez seja mais relevante do que abstrair.

É uma das marcas pessoais desse realizador, que iniciou-se no cinema saído da publicidade e do videoclipe com Alien 3 (1992). Estilizou o filme de serial killer com Se7en (1995) e foi para as jugulares do pós-moderno com Clube da Luta (1999), um filme certamente curioso, mas claro trabalho de um cineasta verde, ainda com dificuldades de lidar com pequenos detalhes como o ser humano.

Seu interesse pela técnica cinematográfica faz com que seus filmes tenham o ar de brinquedos de um menino mimado, até que há dois anos ele lançou o muito bom Zodíaco, um brinquedo e tanto. Esse filme pessoal sobre, essencialmente, um lugar e um tempo, a cidade de Fincher (São Francisco) numa época (os anos 70) que ele viveu e conheceu, funcionou muito bem dentro da sua vontade de ilustrar tudo tão bem, sugerindo uma nova fase, talvez mais amadurecida, na sua trajetória.

Em Benjamin Button, no entanto, um filme sobre a vida e como vivê-la, é provável que o mostrar seja menos importante do que o sentir e o viver, aspectos que ganham tratamento já tão visto antes. Mais uma vez, por exemplo, temos a estrutura de um idoso no leito de morte, contando a sua insuspeita história de amor para um filho, algo usado recentemente no burocrático Ao Entardecer, com Vanessa Redgrave.

Vale salientar que a abrangência temporal do filme, ironicamente, parece falseada pela quantidade de artifícios que dublam lugares como Nova York, Rússia, Paris e o Atlântico Norte (em estúdios ou digitais), enquanto imagens da Índia parecem ter sido feitas de verdade. Em geral, o filme tem o look falso típico do cinema que utiliza o digital como um aliado que pode virar um inimigo.

Como o seu personagem Louis de Pointe du Lac em Entrevista Com o Vampiro (1993), Pitt atravessa a sua história com uma narração consciente cujo principal mote, e algo repetido inúmeras vezes, é a certeza de que « nada é para sempre ». Pitt, um ator competente que mostra-se quase sempre acima da sua presença indiscutível de estrela hollywoodiana, atravessa o filme com um ar frustrante de sonolência, como se Button nunca tivesse realmente parado para viver a vida, mesmo que ela tivesse o relógio indo no sentido anti-horário. Uma desconfortável lembrança de Forrest Gump (escrito pelo mesmo roteirista de Benjamin Button, Eric Roth) paira constantemente no ar, sem o benefício da ambiguidade daquele outro filme.

Esse filme de Oscar revela suas verdadeiras cores num final que honra em imagens o seu slogan publicitário, o tipo de artimanha emotiva cuja ressonância não parece ir muito longe.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

O Corajoso Ratinho Desperaux



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma animação que não consegue livrar-se do fantasma de Ratatouille, O Corajoso Ratinho Desperaux (The Tale of Desperaux, EUA, 2008) estréia hoje, programa de qualidade garantida para as férias infantis, já que o direcionamento de mercado para o filme é exatamente esse. Com a prática da dublagem (que faz parte desse direcionamento), o vistoso elenco apresentado nos créditos de abertura torna-se inútil (Dustin Hoffman, Mathew Broderick, Sigourney Weaver), sobrando a fluente narrativa visual e as vozes cariocas que saem da tela.

Como no excelente filme da Pixar de dois anos atrás, esta é a história de um ratinho que irá desafiar os obstáculos para mostrar-se um grande herói. O pequeno Desperaux (menor do que os outros ratinhos já pequenos) e com orelhas de Dumbo é o personagem de um livro, lançado no Brasil pela editora Martins Fontes – A História de Desperaux, de Kate DiCamillo.

Há um tom de fábula, bem diferente da histeria colorida de Madagascar 2, e o cenário do filme sugere a Europa dos contos clássicos, um lugar chamado Dor, alguma localidade nórdica onde a sopa é o principal prato que une o povo. Sendo esta uma obra americana, o sistema de preparação artesanal da grande sopa pelo chef francês e dezenas de cozinheiros é apresentada como uma linha de montagem numa grande fábrica que administra frutas e legumes em esteiras industriais e roldanas de madeira.

Em momentos de dúvida na hora de temperar, o chef é visitado por uma espécie de entidade do sabor, talvez a criação visual mais interessante de todo o filme, misto de espantalho com horta ambulante, sua cabeça um jerimum, rosto, boca e nariz de picles, cenouras e outros membros honorários de uma boa salada. Toda a ação dentro da grande cozinha não ajuda muito o espectador no sentido de esquecer Ratatouille, que era sobre um ratinho com talento nato para a alta comida.

O filme, na verdade, começa com um personagem nos informando que ele não será o principal. Roscuro é uma ratasana de navio que, seguindo o olfato, vai parar na cozinha real. Um incidente no qual ele é o principal protagonista leva a rainha à morte durante um jantar oficial. O rei, inconformado com a perda, decreta o banimento de sopas, ratos e ratasanas do seu reino.

É nesse clima de medo e depressão que nasce o pequeno Desperaux, que a história nos mostrará o quanto é diferente da norma. Gosta de gatos e tem curiosidade pelos humanos. É tido como corajoso (rouba queijo de ratoeiras com um salto mortal) e logo desenvolve o desejo de querer ser um cavaleiro que poderá conquistar a princesa. Ele irá descobrir o submundo das ratasanas, que o filme parece nos mostrar como se fosse a sua própria versão do terceiro mundo. Lá as ratasanas são atrasadas e comem comida estragada.

A animação de Desperaux é realmente muito boa, sem conseguir nos mostrar nada de realmente novo. Percebe-se uma clara dificuldade de dar conta dos personagens e incidentes do livro, tudo sob uma camada esforçada e industrial. Não é um filme orgânico como os da Pixar, mas apenas um produto que almeja o bom gosto, e, de certa forma, acerta.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

Sunday, February 1, 2009

Perambulando pela memória dos Outros





Em Paris, em janeiro, as exposições de/para Dennis Hopper e Serge Gainsborug, e o novo filme de Agnés Varda.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


PARIS - Memória e filmes caminham juntos, o cinema não existe sem os arquivos mantidos, as imagens guardadas e os relatos pessoais sobre o tempo. O tema essencial aparece atualmente com destaque na França através de duas exposições e um filme novo, todos compostos de fragmentos do passado, em imagens e sons. Sem fazerem parte de um projeto único e coordenado, a existência dos três num mesmo momento em Paris mostra o tipo de sintonia que há entre artistas. São eles o ator, diretor e artista plástico americano Dennis Hopper, o também multi-artista francês Serge Gainsbourg e a cineasta francesa Agnès Varda.

Na verdade, me parece que as personas artísticas de Hopper e Gainsbourg ganham validação moderna cada vez mais forte no nosso hoje dentro de uma visão "multi", tão aplicada nas multidisciplinas contemporãneas. Os dois são temas de exposições construídas a partir de arquivos pessoais, os deles. São dois multi-artistas cujas carreiras no cinema e na música (respectivamente) de certa forma eclipsaram suas conquistas em outras áreas. Agora, suas importâncias ganham esse alcance que nos leva a enfoques variados.

A Cinemateca Francesa mostra-se generosa no resgate de Hopper fotógrafo e artista plástico ao lado do ator e cineasta de Easy Rider (1969), da mesma forma que a Cité de la Musique revela o Gainsbourg não apenas compositor, mas também "o homem renascentista das expressões artísticas", inclusive do cinema.

É significativo que a exposição Dennis Hopper & Le Nouvel Hollywood (até 19 de janeiro na Cinemateca Francesa, Paris) comece com uma projeção do homem num monólogo ricamente ilustrado e marcado pela frase "eu me lembro...", uma série de reminiscências que cobrem, em dez minutos, os últimos 50 anos de visões pessoais e históricas na voz e no rosto de Hopper. "Eu me lembro do rosto de James Dean..." é a primeira, "...Eu me lembro de Barack Obama fazendo campanha para a presidência dos EUA..." a última.

Boa parte das lembranças oferecem um retrato pessoal dos EUA, sendo ele um protagonista de peso na cultura, ao mesmo tempo em que atuou como um retratista desse tempo. O subtítulo da expo nos lembra que Easy Rider, que Hopper dirigiu e atuou em 1969, redefiniu os caminhos de um novo cinema americano, livre e autoral, a partir dali, resultando numa leva sensacional de filmes na primeira metade dos anos 70.

Essas lembranças de Hopper também existem impressas em papel, pois ele fotografou tudo e todos desde o início dos anos 60 (amigos o chamavam de "turista", com câmera sempre presente), e essas fotos oferecem olhar intimista de gente como Paul Newman, Andy Warhol e Jane Fonda.

Mais curiosos ainda são as reinterpretações do homem Hopper via obras de Julian Schnabel (também cineasta) e Warhol, integrando a expo, ou a maneira como Hopper se mostrou ao longo da sua carreira em filmes tão variados como Juventude Transviada, Apocalypse Now e Veludo Azul, ou publicidades de carro onde cita ele mesmo e seu Easy Rider.

A sensação de passar duas horas dentro de um grande armazém de objetos e idéias pessoais também existe em Gainsbourg 2008 (até 1o de março na Cité de la Musique, Paris), uma outra carga de imagens e sons sobre o artista que faleceu em 1991. O eixo da exposição é associar livre e fielmente as múltiplas influências de Gainsbourg como criador (especialmente a música, as letras e as imagens) numa época em que a sua obra torna-se cada vez mais conhecida longe da França, onde, de certa forma, manteve-se restrita ao longo da sua carreira.

Melodista agraciado e letrista iluminado com radar afiado para o mundo, a política e as mulheres (suas musas Brigitte Bardot e Jane Birkin), a exposição oferece o arquivo (música, filmes, acervos digitais manipuláveis pelo visitante) como forma de entender um criador do passado cuja obra continua totalmente relevante no presente.

E Agnès Varda é a terceira parte desse passeio não planejado em janeiro de 2009 pelas memórias guardadas em arquivos áudiovisuais. Seu filme novo, em cartaz na França, chama-se Les Plages d'Agnés (As Praias de Agnes), um diário de vida que pode ser visto como um documentário narcisista, mas que não merece realmente o comentário nesse tom negativo. Há um claro desejo da sua autora no sentido de compartilhar (mais uma vez) seu rico arquivo pessoal, do topo dos seus 80 anos de idade, deixar claro que viveu a vida e que foi importante.

Recentemente, Ernesto Barros programou no Apolo (Recife) uma temporada de filmes de Jacques Demy, o companheiro de Varda (falecido em 1990), e com quem colaborou no cinema e na vida. A presença de Demy em As Praias de Agnès soa como a leitura de velhas cartas pessoais, e persiste no filme a sensação de uma artista que precisa compartilhar com o mundo um pouco da sua vida, balanço arquivado de imagens e sensações que ela filma em esquetes documentais, e outras figurativas de tom sentimental.

É um filminho tocante, de alguém que quer deixar imagens e sons como herança. Isso nunca é ruim.

Num determinado momento, ela nos mostra Serge Gainsbourg no estúdio, ou um Harrison Ford lembrando com sarcasmo que o estúdio o rejeitou para papel principal de um projeto de Demy em Hollywood, logo após o sucesso de seus filmes nos anos 60 (Os Guarda-Chuvas do Amor, Palma de Ouro em Cannes 1963).

À certa altura, Varda mostra a Palma conquistada pelo marido e o seu próprio Leão de Ouro em Veneza 1985 (por Sem Teto Nem Lei-Vagabond), ameaça de auto-parabenização, pensa o espectador, mas usa os troféus para mostrá-los sumindo no tempo.

É um filme pessoal, home movie lançado nas salas, e que sugere registrar os amigos e os fatos não tanto na forma que eles realmente existiram e ocorreram, mas da maneira que a portadora das imagens e das memórias quer que sejam lembrados.

Changelling



Lábios procuram o filho perdido no passado.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Há um mês, registramos os 100 anos de Manoel de Oliveira, que trabalha no seu mais novo filme, Singularidades de uma Rapariga Loura, com provável estréia no próximo Festival de Berlim. A Troca (Changelling, EUA, 2008), que estreou no último Cannes, é a mais nova peça na obra de Clint Eastwood, que aos 78 anos nos dá dois filmes feitos e lançados em 2008. Esse é o primeiro que chega ao Brasil, o segundo, em cartaz nos EUA, chama-se Gran Torino (lançamento no Brasil em março). Não deixa de ser um privilégio ter um Eastwood apresentando suas narrações tão distintas da norma atual.

Por ser prolífico e pontual, já escrevemos sobre Eastwood e seu cinema ao longo dos últimos anos sempre com esse misto de respeito e admiração, talvez uma postura conservadora de reverência a um tipo de escrita que vem carregada de tempo, e é possível que haja algo de bom nisso. O segredo aqui é entender onde fica a real admiração pelo cinema e a condescendência com o autor que pode, de fato, vir a fazer um filme não muito bom.

Tem sido uma leva consistente de dramas americanos essa de Eastwood, e que parecem funcionar com público e crítica. Têm surgido como candidatos constantes às honrarias da chamada "temporada de prêmios" de Hollywood, e a atual temporada começa neste domingo com O Globo de Ouro.

Destaca-se nessa obra o trabalho de alguém que parece emular nos seus filmes novos o estilo do cinema clássico americano do passado. Menina de Ouro (Oscar de Atriz, para Hilary Swank, e Direção para Eastwood) sugeria ter como raiz os dramas realistas de boxe da Warner nos anos 30, A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima (lançados com intervalo de apenas dois meses) pareciam releituras de filmes de guerra dos anos 40. Já A Troca passa como um melodrama dos anos 30, o tipo de coisa que uma Claudette Colbert estrelaria na época.

Essa busca por um cinema do passado ganha clara sugestão já nos primeiros segundos de projeção de A Troca com a utilização da vinheta original dos anos 30 da Universal, no lugar da moderna animação digital colorida que vemos normalmente. O que segue é a proposta de sermos transportados para a Los Angeles de 1928, num trabalho de reconstituição visual repleto de pequenos e grandes detalhes, o maior prazer deste filme. Planos gerais de ruas e da cidade do passado não são poupados.

Christine (Angelina Jolie, lábios e lágrimas em personagem de papelão) é a mãe solteira de Walter (Gattlin Griffith). Funcionária da empresa telefônica (lindo cenário), ela divide as obrigações profissionais com as maternas numa época em que as mulheres ainda lutavam por espaços de chefia. Chegando em casa um dia, Walter sumiu, o que estabelece a base desta história real.

Lembranças de Los Angeles – Cidade Proibida (L.A Confidential) surgem no sentido de os dois filmes terem como forças narrativas a corrupção, incompetência e pura malvadeza histriônica da polícia da cidade na época. Christine é transformada em objeto de marketing ao virar peça chave de um plano absurdo de tons surrealistas dignos de um pesadelo, uma vez que as autoridades entregam a Christine (com presença da imprensa) um garoto que não é o seu filho. Por mais que ela explique que aquele garoto estranho não é dela, termina levando-o para casa.

O tom novelesco do filme (porém filmado como grande cinema de tela larga) encontra tradução na presença de John Malkovich, como um pastor radialista que denuncia os podres da polícia, aliado poderoso de Christine. Malkovich marreta sua interpretação quase tanto quanto a enfermeira loira do sanatório que recebe a pobre mãe injustiçada, e essa enfermeira parece estar sob empréstimo de Olga, de Jayme Monjardim.

Entre o fascínio de um filme antigo e a sua própria obesidade, o espectador poderá ver-se constantemente interessado e frequentemente confuso. Com 140 minutos não muito fluentes, A Troca passa de mãe coragem - "eu quero meu filho!" – a filme de serial killer com gradual investigação, terminando com drama de tribunal, cenário muito freqüentado pelo cinema americano, onde verdades vêm à tona e a moral da lei é conquistada e restituída aos bons de espírito.

Curiosamente, a moral é de fato devolvida, mas Eastwood fica devendo à sua personagem parte importante da sua própria alma, sob o peso do mistério e do horror de ter um filho que sumiu.

Impossível não ignorar o sentido legalista de Eastwood, seu horror ao abuso de crianças (Sobre Meninos e Lobos ecoa nesse novo filme) e o fim que criminosos do tipo merecem por crimes hediondos: a pena de morte, uma outra instituição americana. O filme cresce, no entanto, ao (ironicamente) alongar-se ainda mais na sua duração desengonçada para nos mostrar que não é fácil encontrar paz mesmo vendo seu algoz sendo executado na sua frente, ou mesmo sendo uma cinéfila constante apaixonada por Clark Gable e Claudette Colbert.

Na sua estréia em Cannes, A Troca parecia uma obra inacabada. Se o tom melodramático folhetinesco (gente boa contra gente ruim) era aquele mesmo, seu aspecto inchado e à procura de polimento sugeria um filme que poderia ser melhorado. Revendo-o essa semana no Recife, A Troca é o mesmo filme. Esperemos Gran Torino.

Filme revisto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009.
Visto originalmente em Cannes, sala Lumiere, maio 2008.