Saturday, May 2, 2009

Terra



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Os melhores documentários de observação da natureza são ingleses, feitos pela BBC, e já existiam décadas antes de a cultura da televisão a cabo espalhar pelo mundo o onipresente Discovery Channel, que também alimenta-se do mesmo material britânico. Quem já não deitou num sofá para ver lutas territoriais entre antílopes no Quênia ou a fuga cruel e desesperada de um filhote de elefante das garras de um leão faminto? É tudo filmado de uma forma tecnicamente soberba, cativante, o tipo de coisa que está à mostra em Terra (Earth, Inglaterra/Alemanha, 2007), versão condensada para uma única sessão de cinema (90 minutos) da série Planet Earth (Planeta Terra), produzida pela BBC com 12 capítulos de uma hora cada.

O filme parece ter sido montado a partir do infindável arquivo da BBC com imagens da natureza em luta e em harmonia, com o melhor que a tecnologia de imagem é capaz de permitir. Boa parte do que vemos no filme pode ser achado em fragmentos postados no YouTube, muito embora escolher bem uma sala de cinema com ótima projeção deverá fazer justiça à experiência de ver essas imagens na tela grande.

Terra é prazeroso, não obstante a narração solene (dublada) que, em grande parte, lembra uma descrição para deficientes visuais.Não deixa de ser curioso que um filme tão cheio de imagens eloquentes ainda acredite na gordura de uma narração impostada que só reforça o que já estamos vendo. Quer uma sugestão? Leve um player mp3 e crie sua trilha sonora pessoal com fones de ouvido. Dependendo da escolha musical, Terra pode ser ainda mais interessante.

Meticulosamente embalado para satisfazer o mercado de famílias que vão juntas ao cinema, a poderosa Disney comprou os direitos de distribuição e lança o filme sob o selo Disney Nature, clara tentativa de explorar comercialmente o eco-filão que rendeu milhões de dólares para produções francesas como Migração Alada (Le Peuple Migrateur, 2001) e a Marcha dos Pingüins (La marche de l'empereur, 2005). A palestra powerpoint Uma Verdade Inconveniente (An Inconvenient Truth, 2007) também merece lembrança, onde Al Gore nos dá um “se ligue” sobre os rumos que a raça humana tem dado ao planeta, ganhando um Oscar em troca. Escolheram também lançar essa semana por causa do Dia da Terra (22 de abril).

Em Terra, a lição é mais amena. O eixo narrativo é um ano inteiro de ciclos naturais, começando no pólo norte e terminando no pólo sul. Se é que há personagens principais, estes seriam uma família de ursos polares, vítimas diretas das mudanças climáticas, principal tema em discussão na área. As imagens de uma mãe e seus dois ursinhos polares saindo da hibernação, ou a do urso pai à procura de comida, dão início às indagações de espectadores que têm a facilidade de pensar aspectos como técnica e logística: “como filmaram isso?”. A pergunta volta à mente inúmeras vezes ao longo da projeção.

A sucessão de imagens espetaculares mostra situações como cegonhas vencendo as montanhas do Himalaia e enfrentando rajadas congelantes de vento ou, no momento mais cartunesco do filme, patinhos mandarim bebês deixando o ninho pela primeira vez em vôos desengonçados e corajosos. O investimento em imagens “família” estimula uma identificação entre bichos e gente, e a seqüência onde a ave do paraíso da Nova Guiné arruma a casa para receber uma pretendente, seguido de uma dança muito louca para ganhar a menina é uma coisa engraçada e estranha.

(aliás, veja aqui e caia para atrás de graça com a dor alheia)



Imagens de famílias (elefantes, pingüins, baleias jubarte) reforçam os laços, mesmo que pequenos filhotes sejam vítimas de predadores ferozes (leões, linces, tubarões brancos). Essas seqüências de terror natural são calibradas por uma montagem ‘censura livre’ que não deixa dúvidas sobre a crueldade da natureza, mas nunca mostrando uma gota sequer de sangue. Outras imagens espetaculares feitas com lapso de tempo (a câmera permanece um mês inteiro parada, filmando algumas imagens cada dia) onde toda uma paisagem muda com o fim de uma estação e a chegada da próxima chamam a atenção pela precisão e também para um aspecto cultural.

Fica a sensação, especialmente para possíveis utilizações do filme como material didático, que espectadores dos trópicos saem com a sensação de que sua região não foi representada. Há uma breve passagem pelas florestas equatoriais, mas logo chegamos à misteriosa e fotogênica África, num todo que privilegia a vida sob as quatro estações bem definidas, especialmente sob o gelo. Talvez caiba ao cinema brasileiro filmar o próprio país como ninguém jamais o viu, menos ainda os brasileiros.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, abril 2009

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