Saturday, May 2, 2009

Um Conto de Natal


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

O cineasta francês Arnaud Desplechin tem a capacidade de sugerir filmes que passam a sensação de estarmos diante de um livro de mil páginas. Se Reis e Rainha (Rois et Reine, 2004) já tinha isso, a idéia de um calhamaço ronda mais ainda o seu último, Un Conto de Natal (Un Conte de Noel, 2008), uma experiência e tanto em alcance dramático, excessos estilísticos e uma tapeçaria humana que é ao mesmo tempo fascinante e enlouquecedora na sua neurose. Nos convida para um final de ano com uma família cuja grande casa parece ter não apenas múltiplos cômodos, mas também túneis obscuros e passagens secretas para dentro de uma psicologia espessa que termina por oferecer mais um retrato bem impresso do bicho gente.

Vendo o filme de Desplechin, que torna-se, a cada novo trabalho, um dos principais cronistas das relações humanas atualmente em atividade no cenário internacional de cinema, pode-se pensar com curioso interesse na tradição que o cinema francês tem de filmar personagens que falam, sensação sentida outra vez recentemente em Entre os Muros da Escola, onde Laurent Cantet comanda um tiroteio verbal entre alunos e professores ambientado, em grande parte, dentro de uma sala de aula.

No caso de Desplechin, ele não apenas exercita seus quilos de texto, interpretados pelo seu elenco (Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni, Mathieu Almaric, Emmanuele Devos) como que se num transe coletivo, mas acrescenta movimento, imagens congeladas, montagem veloz e brusca, telas divididas, direção de arte beirando o barroco, intertítulos (literários...) e referências ao próprio cinema e à música numa mistura ambiciosa. Passa a sensação de que este seria o seu último filme, e que nenhuma idéia ou imagem poderia ficar de fora.

Essa sensação talvez faça sentido levando em consideração que a matriarca da família Vuillard, Junon (Deneuve), na cidade natal de Desplechin, Roubaix, norte da França, acaba de ser diagnosticada com leucemia, doença que vitimou, anos antes, um filho aos seis anos de idade, trauma do clã e certamente dela como mãe.

Não deve ser por um acaso que os Vuillard têm uma doença sanguínea que os une, elemento literal que ilustra bem o sentido que Desplechin traz para seu cinema. Se em Reis e Rainha ele foi capaz de mostrar que uma carta tem o poder de queimar a pele pelo seu conteúdo virulento, aqui as relações biológicas entre os personagens são fortalecidas por um interesse que beira o científico e que logo se tornam questões psicológicas e mesmo espirituais.

Junon, por exemplo, teria gerado um segundo filho, Henri, com seu marido Abel (Jean-Paul Roussillon). A missão no mundo de Henri seria poder, tudo dando certo, ser um doador compatível de medula óssea para o irmão, na época, enfermo. Com a morte da criança amada, Henri teve que contentar-se com o tratamento distante dos pais, que nele depositaram uma tonelada de culpa e rejeição. Não é de se espantar que Henri adulto (Almaric, de A Questão Humana) cumprimente a mãe ao chegar para os festejos natalinos com a alegre pergunta “E aí? Continua sem me amar?”, para a qual ela responde, “Nunca amei!”.

Se fosse um filme sueco, trocas do tipo talvez agregassem peso ainda maior, mas há uma certa veia francesa que mantém a dureza dos diálogos num ritmo que parece ditado pela elegância de uma taça de vinho. Henri é claramente um homem destroçado, e sua imagem assinatura, também adequada para passar o tom do filme, é sua capacidade de cair de cara no chão numa esquina urbana, alguém que tenta se levantar depois de ter a vida inteira com a cara, literalmente, no chão.

A menção aos dramas suecos talvez não seja justa, pois temos aqui um irmão caçula do Fanny e Alexander (1983) de Ingmar Bergman, grande tapeçaria do intimismo invernal que os europeus filmam tão naturalmente em internas pontuadas por comida e bebida.

Desplechin, astuto observador das movimentações familiares, é o tipo de diretor que não apenas põe o olho nas movimentações peculiares das crianças dentro de uma casa como é capaz de escalar Chiara Mastroianni, filha de Deneuve na vida real, não como sua filha no filme, mas numa relação nora/sogra. E vejam a miniatura daquela casa, representação de toda a família como o próprio cinema muitas vezes é em relação a vida.

Filme visto no Grand Theatre Lumiere, Cannes, Maio 2008

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