Sunday, February 1, 2009

Cinema Jean Vigo, Bordeaux




por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O Jean Vigo fechou no dia 30 de dezembro, em Bordeaux, na França. A prefeitura da cidade, que subsidiava a sala, decidiu encerrar a parceria.
Na França, cinemas de artes e ensaios ("arts et essais"), em ruas, como esse recebem subsídios para existir como forma de oferecer uma outra experiência cinematográfica, e de olhar, longe dos multiplex.

A penúltima sessão foi Annie Hall, de Woody Allen, em 35mm, que eu fui ver. O filme foi parte de uma temporada de Woodys dos anos 70, na sua fase "Diane Keaton" (Sleeper, Love and Death, Annie Hall e Manhattan).

Caos Calmo



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

22/12/2008

Interessante escolha para uma programação de natal no Cine Rosa e Silva com o filme italiano Caos Calmo (2008). De certa maneira, muitos de nós chegam ao final do ano sob o peso de um dezembro caótico de fechamentos de processos pessoais e profissionais e uma correria de compras refrigeradas que, ironicamente, querem apontar para um final de ano marcado pela paz, harmonia e tranqüilidade. O filme de Antontello Grimaldi estreou no último Festival de Berlim e foi um sucesso comercial nos cinemas italianos, adaptado de um best-seller nacional escrito por Sandro Veronesi.

O personagem principal chama-se Pietro Paladini (Nanni Moretti), é ele quem passa pelo momento titular. Acaba de perder a esposa jovem e tem uma filha pequena. Por algum motivo, nem ele nem a filha reagem emocionalmente dentro dos padrões conhecidos. Ele desenvolve instinto de super-proteção com a filha mantendo sempre uma expressão serena de perplexidade e pânico controlado. A menina não parece entender que a mãe não estará mais do seu lado, e se entende, parece tentar não lidar com isso.

O eixo dramático do filme, e aspecto memorável do mesmo, é uma praça bucólica. Ao levar a filha na escola pela primeira vez depois da grande perda pessoal, Pietro promete à filha insegura e debilitada que ficará ali o dia todo, esperando ela sair. O que seria o ato de um dia, logo se transforma em vários dias, e em algumas semanas, com Pietro sentado nos bancos da praça enquanto a filha fica na escola. É um feito e tanto já que Pietro é um grande executivo de um enorme conglomerado da comunicação.

Sua estadia na praça, ou sua greve de responsabilidades perante dores da alma, resulta numa série de interações com os que freqüentam o lugar normalmente, de mulheres lindas e simpáticas que passam andando, uma relação terna com um garoto e as visitas preocupadas do irmão de Pietro (Alessandro Gassman, filho de Vitório). Seu chefe estrangeiro, ninguém menos do que Roman Polanski, também o visita ali, reforçando o clima geral de paz na terra aos homens de boa vontade.

Bem menos pegajoso do que algumas cenas nos levam a achar que o filme poderia ser, Caos Calmo resulta numa experiência curiosa não só como produto, mas como parte da trajetória de Nanni Moretti. Esse autor italiano dono de um cinema em Roma, primo de segundo grau de questões humanas e estéticas de um Woody Allen, normalmente dirige seus filmes pequenos, um deles, O Quarto do Filho (Palma de Ouro em Cannes) com questões semelhantes às propostas em Caos Calmo.

Nesse aqui, ele atua e é co-roteirista, sua presença sempre interessante, tolerante, e é impossível não citar um momento inesperado de Caos Calmo que é ver Moretti numa cena de sexo especialmente descabelada. Um detalhe ruidoso como esse é exatamente o que diferencia o cinema mundial da escrita hollywoodiana, onde personagens benignos são desprovidos de sexualidade para confirmar ideais puritanos que regem a indústria. Nesse caso, apenas aumenta a sensação de estarmos diante de cenas honestas da vida humana, e isso nunca é ruim, especialmente nessa época de natal.

Manoel Faz 100 Anos


"Em julho de 2001, uma menina acompanhada de sua mãe, distinta professora de História, atravessa milênios de civilização ao encontro do pai"

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Esse é o singelo letreiro que Manoel de Oliveira usou para abrir um dos seus mais belos exercícios filmados, Um Filme Falado (2003), que ele rodou aos 95 anos de idade. Aqui, seu cinema da Mandragoa/Gemini Films elegantemente ciente não apenas de si, mas fascinado com o passado e a Europa, encontra um reflexo nítido. Revendo o filme às vésperas do aniversário de 100 anos desse realizador único, torna-se impossível não aplicar o doce letreiro à própria trajetória do homem em si, Manoel de Oliveira.

Esse autor português de cinema atravessou, de fato, um bloco particularmente espesso de história, o século 20, seu curta Encontro Único (Rencontre Unique, 2006) leve e ligeiro assinala isso, numa reimaginação do que teria ocorrido se o Papa João XXIII tivesse encontrado Nikita Khrouchtchev num jantar, em algum ponto do século 20.

Sua trajetória sugere algo de místico na sua longevidade, e conectar um ser humano nascido em dezembro de 1908 à sua desenvoltura física e intelectual em dezembro de 2008 é algo que parece mexer com as regras da própria natureza, não obstante o fato de termos no Brasil um outro caso raro do tipo no colega de geração de Oliveira que é Oscar Niemeyer, também ativo aos 101.

Muito se fala e se escreve na grande mídia sobre Oliveira como objeto geriátrico, a descrição mais medíocre possível a de que é "o cineasta mais velho em atividade". O fato que é realmente belo, algumas vezes esquecido como observação quando ele é o assunto em questão, existe mesmo na compreensão de que Manoel de Oliveira é velho. No entanto, como podemos computar esse fato no sentido de nos dar uma obra incomum e que não pode ser dissociada de toda uma trajetória de tempo que ele mesmo sugere tentar compreender na sua produção?

Observar sua filmografia e vê-lo concentrando o grosso da sua produção como octogenário e, especialmente, na sua nona década (entre 1930 e a década de 70, fez 14 filmes, mas nos últimos 25 anos já conta 34, com mais um previsto para 2009, Singularidades de uma Rapariga) explica um olhar pessoal ímpar em tom, ritmo e recorte sobre temas como o tempo. Não tanto o peso do passado, mas a sua beleza. Isso explicaria o fato de vir filmando, já há dez anos, um filme por ano, às vezes dois, entre longas e curtas. Ele, que foi corredor automobilístico, parece estar correndo também agora.

Esse é um retrato possível de um artista que, numa imagem emblemática, foi visto por mim no último mês de maio, no Festival de Cannes, não apenas recebendo uma homenagem de Gilles Jacob – presidente de honra de Cannes -, mas, não muito longe dali, num outro dia, andando sozinho e tranquilamente aos 99 anos de idade na calçada da Croisette, com bengala e chapéu panamá. Ele sempre faz isso, em Cannes.

A homenagem de Cannes 2008 (amplamente divulgada na grande mídia sublinhando o já citado fator geriátrico do homem) aconteceu principal sala do festival, diante de toda a comunidade cinematográfica que o aplaudiu de pé. Foi ali celebrada a vida centenária de Oliveira, associada na cerimônia aos 100 anos do próprio cinema, idéia que lhe cai bem factual e poeticamente. Ao vê-lo passando por mim na Croisette, numa manhã apressada de Cannes, algo me chamou a atenção na imagem saudável do ancião esguio.

A primeira informação racional que vem à cabeça é o fato de ser este um cineasta cujo primeiro filme - Douro, Faina Fluvial - ele realizou em 1931, época em que o cinema ainda se reequipava para os filmes sonoros, e quando o seu anfitrião em Cannes, Gilles Jacob, presidente de honra do festival, tinha um ano de idade incompleto. Que distância de vida e de história separam Douro, Faina Fluvial, um filme mudo, de Um Filme Falado, realizado por Oliveira já na década de 2000!

Se a distância é incomensurável, percebe-se nos dois filmes uma ligação profunda à idéia de geografia humana e histórica que parece ter como base sua terra natal, a magnífica cidade do Porto. Da presença constante do rio no primeiro filme, à sua fauna ribeirinha, temos a despedida das terras portuguesas como os antigos navegantes, poeticamente substituídos pela mãe e sua miúda loirinha de Um Filme Falado.

A percepção dessa cidade me leva à pouco discutida, mas muito desfrutada força que alguns insistem em chamar de "mística", inerente ao processo artístico em geral, e certamente presente também no cinema, e no cinema de Oliveira. No nosso papel de observadores, essa mística geralmente ocorre quando encontramos na imagem apresentada uma sintonia para o que pensamos, ou, melhor ainda, quando a projeção nos mostra caminhos novos.

Isso é normalmente amplificado pelas relações pessoais que estabelecemos com certos objetos, cabendo ao artista o papel de mediador. O que dizer, por exemplo, de uma visita apaixonada ao Porto e, por uma feliz coincidência, assistir ali mesmo, no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, a O Porto da Minha Infância (2001), homenagem pessoal de Manoel de Oliveira ao lugar que o definiu?

O filme, com pouco mais de uma hora, é uma caixa de lembranças ordenadas organicamente num pensamento em fluxo. Oliveira foi filho de família burguesa, seu pai o primeiro fabricante português de lâmpadas elétricas. Nesse filme, outra imagem emblemática a ser lembrada nesse mês de comemoração: um homem escala sozinho, nos anos 20, e sem a ajuda de cordas ou aparatos de segurança, os 76 metros da Torre dos Clérigos, claramente uma lembrança aqui restaurada pelo cinema da juventude de Oliveira.

Seu interesse pelo Porto mostra-se presente tanto na parte inicial da carreira, com relatos documentais (Douro, Faina Fluvial, ) e ficcionais (Aniki Bobó, 1942, sobre crianças da área ribeirinha), como nesse filme recente que ilustra o fator réquiem tão curioso no cinema recente do autor português.

A obra réquiem não é exatamente uma área restrita aos que chegaram à idade avançada, mas ela parece surgir naturalmente para muitos desses artistas maduros. No cinema, há exemplos de realizadores que sustentam hoje em dia um ritmo acelerado já depois dos 70 anos de idade como se pouca coisa os afetasse. Woody Allen, Alain Resnais, Clint Eastwood, Sidney Lumet, ou os brasileiros Eduardo Coutinho e Domingos de Oliveira, que filmam como jovens.

Debruçando-nos sobre suas respectivas obras pessoais, é possível enxergar reflexões sobre eles mesmos com o tom de uma reavaliação e ciência de que o fim se aproxima. De qualquer forma, obras como Os Imperdoáveis (Eastwood), O Fim e o Princípio (Coutinho) e o recente Juventude (Oliveira) parecem atropeladas pela própria energia de vida desses realizadores, que dão continuidade ao que fazem com trabalhos seguintes não tão claramente associáveis à idéia da passagem.

No cinema de Oliveira, esse tom tem sido presente de forma constante, leve e plena de beleza, e o início dessa fase pode ter sido iniciada em 1982, quando fez o ainda inédito Visita – Ou Memórias e Confissões, o filme que, de fato, ele deseja ter como testamento. Sua exibição está interditada até depois da sua morte, e sabemos que nessa obra há lembranças pessoais que incluem sua prisão via Policia Internacional de Defesa do Estado, no ano de 1963.

O desejo de ver finalmente Visita – Ou Memórias e Confissões gera, portanto, um impasse para o observador. Só veremos o filme depois da morte de Oliveira, o que nos leva a não querer ver essa obra tão cedo. De qualquer forma, um plano precioso da sua obra conhecida parece ilustrar com propriedade esse artista.

Em Viagem ao Princípio do Mundo, um homem velho (Marcello Mastroiani, no seu último papel), visita as cercanias de onde cresceu no norte de Portugal. À certa altura, ele olha para a janela traseira do carro, que trafega por uma quinta portuguesa, e durante mais de dois minutos, vemos a estrada ficando para trás. O tempo.

A Mulher do Meu Amigo



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma discussão de tom nacionalista relacionada à nossa presença no mercado de cinema indica que entre o lixo estrangeiro e o lixo brasileiro, melhor ficarmos com o lixo feito aqui. De fato, é melhor mesmo, e mais saudável, mas há uma terceira possibilidade que é, entre uma bagaceira e outra, evitar as duas. Um caso específico é o filme A Mulher do Meu Amigo (Brasil, 2008), de Cláudio Torres, que funciona como nossa resposta nacional a algo importado como Jogos Mortais V. Dependendo da visão de cada um, ambos são comédias, ou filmes de horror. Essa produção da Conspiração Filmes tem um elenco composto por Marcos Palmeira, Maria Luisa Mendonça, Mariana Ximenes e Otávio Muller.

Não se sabe bem ao certo o porquê, mas a comédia brasileira de mercado vai bem mal, alguns filmes memoráveis apenas via busca na internet apontam para isso (Trair e Coçar é Só Começar, Muito Gelo e Dois Dedos D'Água, Sexo Com Amor, A Guerra dos Rocha). É uma lista tão pavorosa que, numa visão retrospectiva, o grande sucesso recente do gênero, Se Eu Fosse Você (o "2" estréia em janeiro), termina sendo o nosso atual Um Convidado Bem Trapalhão (The Party), de Blake Edwards, ou Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot), de Billy Wilder.

Para começar, é difícil fazer uma comédia, especialmente se o gênero, tão propício ao comentário sobre o ser humano e o mundo e seu estranho funcionamento, parece estar sendo tratado como pedras de dez toneladas jogadas em caminhões caçamba de 12 pneus. Curiosamente, a melhor comédia brasileira do ano parece ter sido mesmo Juventude, de Domingos de Oliveira, um micro-filme feito em vídeo sobre três homens maduros e suas lembranças da vida, isolados numa mansão interiorana e, mesmo assim, um filme humano e engraçado. A ironia é que A Mulher do Meu Amigo seria uma adaptação de um texto do mesmo Domingos de Oliveira (Largando o Escritório, no original), talvez não por acaso também ambientado numa mansão interiorana.

Palmeira (a presença mais serena do elenco) é um advogado de 38 anos, casado com a filha (Ximenes) do dono (Antônio Fagundes, especializado em ser dono, chefe e Deus). Num final de semana na já citada casa, o amigo (Muller), sua esposa (Mendonça) e os filhos testemunham uma mudança de alma no advogado, que decide abandonar o mundo dos grandes negócios escusos para dedicar-se a uma vida mais saudável, largar o escritório e cuidar dos despossuídos. Descobrimos que sua esposa é amante do amigo há mais de dez anos e que, numa ausência dela e do amigo, ele irá se interessar pela mulher do amigo.

Não é um filme de insinuações, mas de marteladas, um pouco como as tentativas de uma perua mostrar-se elegante. De fato, o filme parece direcionado ao vasto público perua dos multiplexes de bairros abastados que ainda acha que, para compreender que um casal irá ficar junto, Let's Get it On, de Marvin Gaye, precisa ser ouvida na trilha sonora. Detalhe interessante é a participação das crianças, que não falam, não têm nome e o tempo de tela que têm deve ser igual à do merchandising, que continua aparecendo como faróis em cena.

Tudo isso vindo de Cláudio Torres, uma das forças criativas da Conspiração Filmes, cujo primeiro filme, Redentor, sugeria coisas melhores do que esta. Chama a atenção a mão de Torres para com os atores. Exceto por Palmeira, que parece ter se recusado a seguir orientações, Ximenes, Muller e até mesmo a sempre interessante Mendonça desfrutam de uma euforia estranha localizada a pelo menos cinco graus da realidade. Sugerem o desespero dos que estão desesperadamente sem graça.

Deserto Feliz


Hermila Guedes e Nash Laila em Brasília Teimosa.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Depois de estrear internacionalmente no Festival de Berlim do ano passado, ter exibições vitoriosas em festivais como Gramado (prêmio de Melhor Diretor), Rio e Mostra de São Paulo de 2007, e passar por um longo período de reconfiguração de custos de produção, finalmente chega aos cinemas Deserto Feliz, filme de Paulo Caldas (co-diretor de Baile Perfumado e Rap do Pequeno Príncipe). O longa metragem nos conta a história de uma garota de Petrolina que toma o sentido leste para a sua vida rumo a Boa Viagem, no Recife, e de lá para Berlim, na Alemanha, traçando um painel humano moderno de movimentações políticas e econômicas que levam as pessoas de um lado ao outro.

O filme de Caldas apresenta um processamento importante no sentido de estabelecer a produção pernambucana ligada direta e tematicamente com o mundo exterior, muito embora a predominância de obras de sabor "local" (Amarelo Manga, Baixio das Bestas, de Cláudio Assis), mas de apelo universal, nunca tenha sido realmente um problema nos filmes aqui produzidos. Depois de flertar com personagens estrangeiros em Baile e Cinema Aspirinas e Urubus, Deserto Feliz parece passar para a próxima fase.

O faz sob um dos temas principais do cinema hoje, que é a relação entre mundo pobre e mundo rico. Narrado no que aparentam ser três atos, Jéssica (Nash Laila), no primeiro, é a menina sertaneja que mora nos arredores de Petrolina, onde o verde das plantações domina, e verde é algo que Caldas já havia aprovado (em Baile Perfumado) como cor representativa de um sertão que o cinema insiste em mostrar cinza.

Jéssica mora com a mãe (Magdale Alves) e o padrasto (Servilio Holanda), e entre o carinho da mãe e os abusos animalescos do padrasto, ela prefere fugir de caminhão em direção ao Recife. Essa primeira parte tem um tom rústico marcado por um almoço de tatú que irá contrastar fortemente com o que veremos depois, introduzindo ainda uma sub-trama não muito bem desenvolvida sobre tráfico de animais silvestres que cheira a uma metáfora de obviedade questionável sobre o destino da própria Jéssica.

No Recife, Jéssica entra para a prostituição e passa a morar no edifício Holiday com duas outras garotas, e que interessante é poder ver o Recife do presente filmado em tela larga, muito embora Caldas prefira as internas e os closes dos seus personagens. Para quem não conhece a forma peculiar do Holiday, o edifício (anos 50) é alto e curvo, primo do Copan em São Paulo, e seu desenho, mais uma vez, sugere a curva que a vida da garota passa a tomar.

Uma das meninas chama-se Pâmela (Hermila Guedes), que ameaça roubar não apenas as afeições maternas de Jéssica, mas o filme como um todo. A questão é que o papel de Guedes tem o que falar, enquanto Jéssica permanece misteriosamente calada, fator que torna-se ainda mais frustrante ao sermos apresentados a Mark (Peter Ketnath), um turista alemão boa pinta que passa a ter a sertaneja como acompanhante turística, um tipo igualmente silencioso.

Inicialmente, a relação entre ambos sugere mimetizar a nossa própria observação (nas ruas da zona sul do Recife e hall do aeroporto) das movimentações do chamado turismo sexual, onde predomina a imagem de um homem estrangeiro mais velho e sua acompanhante nativa, os dois de mãos dadas e nenhuma palavra entre o casal.

No entanto, a relação entre Jéssica e Mark parece maior do que isso, talvez exista amor ali, a julgar pela ida dela à Alemanha, onde é exposta a um outro planeta tanto no sentido climático como cultural, algo que não parece muito bem explorado dada a riqueza da premissa. O segmento de Berlim é marcado por um tédio existencial que chega intacto ao espectador, e por uma outra cena simbólica onde Jéssica alimenta animais presos.

Essa apatia dramática do filme poderá dar ao espectador a impressão de que Jéssica e Mark estão trancados num filme de arte sobre mais uma relação marcada pela incomunicabilidade, algo que faz parceria com a fotografia bizarramente azul (mesmo no sol quente do sertão) e por uma câmera equipada com lentes de fundo de garrafa que parecem mais distração do que composição.

Se dramaticamente Deserto Feliz resulta numa experiência fria e árida (talvez seja a estranha intenção), o filme, de qualquer maneira, revela-se o trabalho de um autor que está à procura de um cinema verdadeiro, que nos fale sobre o mundo que enxergamos ao nosso redor. Como lupa para esse mundo, Caldas nos dá uma peça para que possamos construir esse olhar aberto, e no atual panorama de cinema do Brasil, Deserto Feliz tem relevância evidente.

Filme revisto no Palácio 1, Festival do Rio 2007 (visto originalmente no International, Berlim)

Queime Depois de Ler



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Relatos dos que já tinham visto Queime Depois de Ler (Burn After Reading, EUA, 2008) apontavam para uma comédia hilariante dos Irmãos Coen, cineastas da independência comprovada no fazer cinema e que chegaram esse ano ao Oscar (com Onde os Fracos Não Têm Vez) nos termos deles, e não nos da indústria. Veteranos de um lote notável de filmes incomuns com raros sucessos comerciais e nenhum blockbuster, os Coen são admirados por muitos pelo estilo constante e peculiar senso de humor. Curiosamente, esse novo filme nos pareceu bem triste, crônica amarga sobre um grupo de pessoas perdidas e desesperadas.

O filme levanta questão curiosa para a cinefilia, ou o ato de ir ao cinema ver um filme. O que é engraçado? Os filmes de terror REC e Os Estranhos dão medo? Para uns, Queime Depois de Ler passa como engraçadíssimo, e REC e Os Estranhos como ridículos, que não assustam ninguém. Enfim, cada um com o seu cinema.

Nesse filme, feito com a carpintaria usual dos Coens (bem filmado, editado, sonorizado), astros como George Clooney e Brad Pitt engatam o formato palhaço, algo que talvez leve alguns a achar tudo muito engraçado. Eles são parte de uma engrenagem típica dos irmãos, que é filmar gente burra, que talvez seja o oposto geométrico deles mesmos. O próprio slogan do filme, "a inteligência é relativa", dá a deixa e logo o filme nos coloca dentro de um mundo institucionalizado da inteligência (a CIA, em Washington) e também, por outro lado, de pessoas comuns.

O mundo da capital federal (o mesmo ocorre em Brasília) ganha interessante contorno, um lugar onde todo mundo trabalha em algum gabinete ou ministério, cada trabalho mais desestimulante do que o outro, a hierarquia dos que estão lá em cima e dos que estão por baixo, e a atmosfera de mistério e investigação sobra para dois funcionários de uma academia de ginástica, Chad (Pitt) e Linda (Francês McDormand). Chad bebe Gatorade e está sempre se balançando com um iPod, homem de limitado vocabulário que as legendas não conseguem expressar. Linda quer fazer quatro intervenções cirúrgicas para turbinar o seu corpo, certa de que, alterada, irá encontrar um homem.

O filme, na verdade, começa com a demissão de um funcionário responsável pela pasta política das Balcãs, na CIA, Osbourne Cox (John Malkovich), que repassa a sua desgraça profissional para a esposa (Tilda Swinton, redefinindo o termo "mulher fria") como tendo "pedido demissão". Ele parte para escrever uma autobiografia bombástica, cujos manuscritos vão parar no chão da academia, e que Chad e Linda interpretam como segredos de estado que devem valer algum dinheiro.

O filme segue a mesma arquitetura de pensamento de um dos melhores filmes dos Coens (e espetacularmente engraçado), O Grande Lebowski (1998). O problema é que aquele filme tinha a lógica (muito bem fundamentada) da maconha, e os pensamentos e conclusões fraturadas faziam total sentido. Em Queime Depois de Ler, o espectador precisa ter a paciência de aceitar os desdobramentos como parte de como a vida transforma cada um numa pequena peça de um grande tabuleiro de poderes, medos e incertezas.

Uma rápida (e sangrenta) explosão de violência é o maior exemplo disso, o que talvez leve o filme a um caminho sinistro que, de engraçado, há muito pouco ou mesmo nada. Até os casos extra-conjugais do personagem de Clooney ganham um aspecto deprimente de rotina, mesma rotina que ele parece estar querendo fugir no casamento.

Curioso Queime Depois de Ler certamente é, os Coen seriam incapazes de fazer algo desinteressante, mas há algo na estranha mistura que deixa um gosto ruim na boca. Repetem o toque narrativo do filme anterior ao verbalizar conclusões que, em qualquer outro filme, seria filmada de maneira aplicada, embora o resultado seja, dias depois, mais próximo do 'esqueça depois de ver'.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Novembro 2008

Friday, January 23, 2009

A Duquesa



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma semana antes da estréia do pernambucano Deserto Feliz, de Paulo Caldas, entra em cartaz um outro relato sobre as agruras vividas por uma mulher, em conflitos que revelam algumas coisas sobre a condição feminina na sociedade. Em A Duquesa (The Duchess, Inglaterra, 2008), que se passa na Inglaterra, na época da Revolução Francesa, uma adolescente – a duquesa de Spencer – casa-se com um outro aristocrata que vê nela única e exclusivamente um útero capaz de gerar um herdeiro. Se o filme é de uma mediocridade paralisante, espectadores poderão ver sua atenção mantida com os desdobramentos de uma vida amorosa animada, adaptada de personagem real, cheia de frustração, dor de cotovelo, paixão e chifre.

Essa estrela de proveta, Keira Knightley (Piratas do Caribe), interpreta a ancestral de Lady Di (que também era Spencer), o nobre útero já citado. O Duque de Devonshire (Ralph Fiennes) é um aristocrata de olhar vago, sempre frio, o marido dela. Sem muita conversa para a coisinha feminina que é a sua esposa, e sempre cobrando um menino (inicialmente, ela lhe dá duas meninas), a duquesa tenta equilibrar o ar de cafetina da mãe (Charlotte Rampling) com a sua solidão palacial frente ao abandono proposto pelo marido, algo que lembra a biografia conhecida da moderna Lady Di.

Seu espírito livre e língua afiada transformam-na numa das mulheres mais populares do Reino Unido, sua solidão aos poucos aplacada pela amizade de uma outra nobre solitária, Bess (Hayley Atwell), foragida do próprio casamento e que irá ensinar a Spencer que o sexo não existe apenas para gerar rebentos, mas também como fonte de prazer, conceito que nossa heroína apenas desconfiava existir. Earl Charles Grey (que tornou-se primeiro ministro britânico), sua paquera dos tempos da adolescência, seu envolvimento extra-conjugal.

Os envolvimentos passionais e sexuais são pratos cheios para um filme interessante, mas o tratamento aqui aplicado é de uma anemia profunda, especialmente para os espectadores que tiverem a péssima idéia de ficar lembrando saudosos de Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick. Aquele filme, claro, parece ter sido filmado no século 18 não apenas visualmente, mas também nas observações cristalinas e reveladoras da vida naquele tempo.

Em A Duquesa, que, de qualquer forma, é melhor do que A Outra (The Other Boleyn Girl), exibido há alguns meses, temos esse tratamento diluído para adolescentes que numa história tão passional nos concede apenas um rápido bumbum anônimo passando ali, e onde a sexualidade ganha não mais do que 60 segundos de sugestão apavorada, para ninguém na platéia correr o perigo de se enojar com algumas verdades sobre a natureza humana.

Knightley parece esticada até quebrar, enquanto Fiennes mostra-se sempre interessante como o totalmente desinteressante duque, o roteiro garantindo que até os créditos finais ele irá se transformar num homem melhor. Drama de época comercial sem grandes conquistas.

Filme visto no Multiplex UCI Recife, Outubro 2008

'RocknRolla', VRUUUMMM, VRUUUMMMM...



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O mais novo filme do cineasta inglês Guy Ritchie (Snatch) tem sido considerado melhor do que o que vinha fazendo antes, e o filme chama-se RocknRolla (2008). Como realizador, Ritchie parece ter 10 anos de idade, a julgar pelos seus filmes dá quase para imaginá-lo fazendo "VrummmmMMMM", "VrummmmMMMM" com a boca enquanto dirige uma cena. Sua preferência pessoal, e o que tem lhe garantido algum sucesso em pequena escala na indústria, é o pastiche do filme de gangster com ambientação londrina. É também adepto de, em alguma cena, e sempre do nada, usar aquele FF brega que apressa a imagem em soluços nervosos que assola os trailers da indústria já há dez anos. Só que ele faz isso no próprio filme.

Mais uma vez, temos um grupo de bandidos supostamente simpáticos e uma trama tão complicada que depois de um tempo o espectador apenas assiste na esperança de que tudo dê certo. Os homens que deverão nos despertar simpatia são One Two (Gerald Butler), Mumbles (Idris Elba) e Handsome Bob (Tom Hardy), que vêem a possibilidade de ganhar dinheiro roubando um bilionário russo que está de olho num grande empreendimento imobiliário. O peixe grande londrino, administrador de corrupção no sistema (Tom Wilkinson), é o atravessador que também termina lesado pelo esquema do trio, e todos se metem numa incrível confusão.

O filme explora a atmosfera de dinheiro que marca Londres no século 21 (pré crise financeira mundial, aliás), com um mercado imobiliário super aquecido que oferece grandes oportunidades para quem tem o dinheiro, e outras ainda maiores para quem não tem. Usando isso como fundo, Ritchie faz suas mungangas com a câmera, com seu roteiro e com uma montagem desembestada que faz de tudo uma corrida maluca não se sabe bem para aonde.

Um outro personagem é tratado com especial carinho por Richie, o do astro pop viciado em crack, Johnny Quid, um agente do caos, talvez a criatura mais interessante de todo o filme ao lado dos dois capangas russos, prováveis criminosos de guerra (Chechênia?) que, mesmo aparecendo como meros objetos de cena, passam sensação desagradável de terror como ameaças indestrutíveis não muito distantes do primeiro Terminator (1984). Tandie Newton, como contadora do russo, aparece como brinde-mulher.

Menção horrorosa especial vai para Butler, o poste de 300, em talvez a pior atuação de um ator principal num filme que se tem notícia. Pouco à vontade em todas as cenas, ele parece estar tentando agradar não sei bem quem, com momentos particularmente constrangedores como numa cena forçada onde satisfaz os desejos homo-eróticos de um grande amigo. Não obstante o quadro aqui apresentado, não é possível negar que essa besteira seja incapaz de entreter minimamente.

Filme visto na Sala 7 THX do Box Guararapes, novembro 2008

Guel Arraes Sobre 'Romance'



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

10/11/2008

"Uma das coisas boas de lançar um filme é poder já estar pensando no próximo", disse ontem, durante um almoço, no Pina, o cineasta pernambucano Guel Arraes. No Recife para apresentar seu último filme, Romance, Arraes confidenciou que o sistema de já ter um novo projeto encaminhado funciona bem para sustentar o tranco de colocar um filme novo no mundo, com as tensões inerentes ao processo (receptividade do público, da crítica).

Seu próximo projeto será uma atualização de O Bem Amado, de Dias Gomes, com Marco Nanini no papel principal que foi, de certa forma, imortalizado na cultura brasileira por Paulo Gracindo na Globo dos anos 70. "A pré-produção já está a pleno vapor, estamos procurando locações e devemos filmar no final de janeiro".

Ele mostrou-se pouco entusiasmado com a possibilidade de fazer cinema popular sem povo, e com as carreiras possíveis que filmes são capazes de ter atualmente no Brasil. Ele acredita que o novo projeto faça o duplo salas de cinema/depois mini-série na Globo, estrutura invertida se lembrarmos que Auto da Compadecida (2000), seu primeiro longa metragem, passou primeiro na TV.

Com uma obra marcada pelo tom híbrido da sua linguagem – "dirigi três peças, mas, na verdade, eram mais TV do que teatro como texto", Arraes chega a Romance com um filme onde o número de cortes é menor do que os seus anteriores, e com a suspeita de que talvez seja um filme "mais fechado" do que Auto ou Lisbela e o Prisioneiro (2003) que, juntos, venderam mais de quatro milhões de ingressos. O filme será lançado nacionalmente amanhã, com cerca de 90 cópias, número médio/grande.

"Essa questão da linguagem sempre me chama a atenção. Saí do Recife em 1969 e em Paris eu tinha um gosto muito alternativo para cinema, inclusive evitando ver filme americano, me apaixonando por Jules e Jim e freqüentando a Cinemateca Francesa de Henri Langlois. "Quando voltei para o Brasil, fui trabalhar direto na Globo, e de repente me vi questionando aqueles preconceitos anteriores meus."

Arraes também parece fazer uma auto-reflexão sobre um dos seus personagens em Romance, o do chefão televisivo de José Wilker. "Vejo nele muita coisa de Daniel Filho e do Boni, mas também de mim mesmo como produtor.

Ele vê o amor como o motor do seu filme novo, baseado em dois pontos: "a música de Caetano Veloso e Jules e Jim, de Truffaut. São obras que discutem o amor contemporâneo que marcaram minha vida. Outra coisa é trabalhar com grupos de teatro que sempre me pareceu muito doce e nostálgico, que talvez remeta aos anos 70, meus anos de formação".

Sobre Tristão e Isolda, Arraes definiu seu interesse pela obra como "técnica". "para fazer uma história de amor sobre o amor, pensamos originalmente em Dom Quixote e Dulcinéia. O amor como ser intransferível, inexprimível, é um bom tema para ficcionalizar".

Dentro da idéia de criar uma ficção com tons sempre alegóricos, perguntamos a Arraes o porquê de seu trabalho tentar evitar a realidade imediata, algo que Romance já revela um pouco mais. "Interessante você levantar isso, pois minha formação é de documentarista, mas na ficção me preocupo muito com o controle sobre as coisas. A estação de metrô que está em construção no filme não está ali por acaso, mas por fazer parte da história. Talvez seja algo que vem do teatro!"

REC


"It's a Sony!"

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Sabendo do ouro que tinham em mãos, os produtores do divertido trem fantasma espanhol REC (2007) soltaram uma publicidade no YouTube, onde uma câmera registrava as reações físicas de uma platéia durante sessão do filme. Muito engraçado ver um grupo de pessoas tranqüilas e, em um segundo, dando pulos histéricos, mãos instintivamente usadas como plano de defesa, entes queridos se agarrando em posição de socorro. O filme é bem bacana, as imagens publicitárias devem ser reais, como um curto documentário de observação.

Curiosamente, a linguagem aqui é, mais uma vez, "documental", câmera ofegante, sempre ligada. Grande sucesso na Espanha e na comunidade de cinema do gênero 'fantastique', REC chega um mês antes da sua refilmagem americana, Quarentena, que já está pronta e lançada nos EUA. Vai ser curioso ver a reação do público pagante desavisado que for desembolsar R$16 para ver a refilmagem de uma obra que talvez ainda esteja em cartaz. Mostra a voracidade da indústria e como em mercados periféricos como o brasileiro, produtos europeus podem (raramente) concorrer com a máquina hollywoodiana nos multiplex, algo que não ocorre nos EUA.

O REC espanhol, feito em vídeo pelo que parece ter custado dois mil reais (perfeitamente empregados, aliás) é um primor de simplicidade eficaz, algo que os americanos imediatamente pagaram para refilmar. Vale ponderar que REC (ou Quarentena, seu remake) são crias de toda uma leva recente de vídeo-terror (Bruxa de Blair, Cloverfield, Diário dos Mortos), e que talvez tenham como raiz o clássico Canibal Holocausto (1980), feito 20 anos antes da explosão de imagens digitais.

A repetição do conceito apenas prova que não importa quantas vezes você ouve a mesma piada, o que vale talvez seja o movimento e o medo do escuro (pelo menos para este observador...). Esse conceito, de fato, parece pedir um pouco de generosidade do espectador. O filme utiliza uma câmera como dispositivo do próprio filme, e exige que um dos personagens não largue a mesma nunca, não importa o quão grotescas as coisas fiquem. Se é para correr da morte certa, corra dando um .REC.

A situação aqui é a seguinte: uma simpática repórter de programa de final de noite ("Enquanto Você Dorme" é o nome do programa, piscadela de olho em direção aos nossos adorados pesadelos filmados) irá acompanhar a madrugada no corpo de bombeiros, em Barcelona, mostrando o que fazem e como dormem. Felizmente, chega uma chamada e lá vai ela com o seu câmera ver o que se passa num edifício residencial. Ali, uma senhora idosa parece ter enlouquecido.

O filme apresenta tudo isso com muita clareza, e logo o espectador estará no prédio, tão atônito quanto os policiais, bombeiros e vizinhos, pois entendemos que a velha virou zumbi.

Curiosamente, o fato de nossa repórter estar acompanhando bombeiros nos lembrou a participação dos documentaristas franceses Gédéon e Jules Naudet, que também acompanhavam bombeiros no 11 de setembro de 2001, quando registraram o primeiro avião entrar na primeira torre. Os diretores Jaume Balagueró
Paco Plaza também parecem fazer menção especial a um outro filme espanhol de anos recentes, A Comunidade, de Alex de la Iglesias.

Começa, portanto, mais um filme de zumbi, e por mais que já tenhamos visto essas criaturas que babam, grunhem e mordem, não há como negar o apelo das mesmas. As regras são simples, fique longe deles e, se for mordido, vai virar zumbi, uma morte sebosa de sangue e insanidade. E, claro, o filme contém pelo menos dois pulos de cadeira que merecem a gritaria vista na publicidade viral divulgada e medalha de honra ao mérito. Lembram que o bom cinema é feito de ponto de vista, luz e sombras bem orquestrados.

Filme visto no Espaço Unibanco 2, Festival do Rio, setembro 2008.

Orquestra dos Meninos



Na foto debaixo, o verdeiro Mozart (direira), Paulo Thiago e o ator Murilo Rosa (Mozart no filme)

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O cineasta mineiro (radicado no Rio) Paulo Thiago tem uma filmografia claramente interessada em histórias brasileiras. Filmou em Pernambuco uma espécie de épico histórico chamado Batalha dos Guararapes (1977), mostrou um caminhoneiro pelas estradas do Brasil em Jorge Um Brasileiro (1988) e investigou a alma do que se chama o tupiniquim em Policarpo Quaresma – Herói do Brasil (1998), onde seu herói queria o tupi-guarani como nossa língua oficial. Seu novo filme, A Orquestra dos Meninos (2008), segue o curso com mais um relato brasileiro, inclusive de uma história real: o nefasto sistema de intrigas pessoais e políticas que tentou derrubar o trabalho de música e cultura orquestrado por um professor no agreste pernambucano.

A história de Mozart Neves, natural de Belo Jardim, é material farto para um filme, e não é difícil associar essa história pronta a Thiago e sua adesão irrestrita às convenções de uma narrativa popular/popularesca. Temos o herói contra todos e injustiçado, investindo no árido terreno da falta de cultura e de educação como alvo incansável desse trabalho (visto como alienígena, como não poderia deixar de ser num mar de pobreza).

Purificador e esclarecedor, os beneficiários são a sociedade como um todo, e mais diretamente um grupo de crianças que, de outra maneira, nunca teriam acesso à música e a novas oportunidades. Entre o final dos anos 70 e os anos 90, Neves, músico e professor, formou a Orquestra Sinfônica do Agreste, utilizando menores que estariam normalmente pegando em enxadas, e não em tubas e oboés.

Se o projeto é exemplar do ponto de vista de como alguém põe em prática sua paixão e claro amor à arte, é também o tipo de pauta que a imprensa adora, até mesmo por trabalhar com arquétipos arcaicos da representação de uma cultura – leia-se "crianças sertanejas tocando musica clássica, que inusitado...". A televisão vive desse tipo de realismo fantástico com base no político e no social, e a Rede Globo fez uma matéria especial memorável que 'vendeu' a história para todo o país com aquele ar de encantamento global tão conhecido.

Para encurtar a história, com o projeto na Globo e a Orquestra sendo recebida pelo então presidente da República Itamar Franco, tudo os levou também a uma turbulenta ciumeira política que Neves preferiu não concordar. Os desenvolvimentos incluem sugestões de pedofilia e o seqüestro de um dos garotos integrantes com uma pitada impensável de terror.

Há um mês, Paulo Thiago, Neves e o ator que o interpreta, Murilo Rosa, vieram ao Recife para divulgar o filme. Tentamos perguntar a Neves o que ficou dos eventos de 1995 e como isso bate com o filme. "Esse filme fala de uma ditadura branca, pois é o que acontece com alguém que se mete com questões sociais e vai falar a verdade. Há pré-requisitos que te perseguem como, por exemplo, a inveja. Hoje eu conheço a diferença entre o mal e o bem. Ali veio o ódio, a prepotência e a inveja, a oligarquia. Sou sério, belo jardinense, casado há 21 anos com o amor da minha vida e vi bandidos terem tratamentos mais especiais do que o que eu tive na época", nos falou.

Sobre o filme em si, A Orquestra dos Meninos nos coloca (os espectadores), numa difícil posição, que é a de ver o filme (envolvente no seu estilo rústico com tudo bem preto e tudo bem branco) e não esquecer que trata-se de uma dramatização de incidentes verídicos, algo que sentimos também no também baseado em fato Última Parada 174, de Bruno Barreto.

Paulo Thiago não parece operar muito bem com sutilezas no seu cinema, sempre pintado com pinceladas espessas de piche e cal. Isso significa que os vilões (todos os que vão contra a bela obra) agem como os vendilhões do templo numa paixão de Cristo teatral de interior, enquanto nosso herói (Rosa, constante, mas com a questão do sotaque digital tão comum nas representações do nordeste via sudestinos) corre de A para B num papel que seria, de direito, de um Gregory Peck, ou um Tarcísio Meira.

Personagens coadjuvantes de luxo (da realidade) com Cussy de Almeida e Dom Helder Câmara ganham roupas negras ou alvas como as nuvens, e há um estranho transplante da morte do crítico de música do Jornal do Commercio, Heber Fonseca (de fato um dos grandes defensores da obra de Neves) para fins narrativos do filme em si que não fazem qualquer sentido, prova do quão 'all over the place' o foco (ou falta de) de Thiago revela-se, mais uma vez.

Constata-se que Orquestra dos Meninos narra uma história, realmente, isso é o seu mérito, mas parece cego às grandes possibilidades de oferecer um panorama humano e social complexo do Brasil, país sem educação e que, em bolsões de ignorância arcaica, vê o conhecimento como algo que precisa ser destruído, e não estimulado. Trabalha com as não-sutilezas de uma reportagem de TV onde todos parecem ter sido especialmente penteados para aparecer, e onde fatos são apresentados como momentos bombásticos de uma verdade imaginada.

Filme visto no Plaza Casa Forte, Recife, Outubro 2008.

Jogos Mortais V


Cabeça achada no lixo.

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Um pouco como a Exposição de Animais no Cordeiro, os filmes da série Jogos Mortais acontecem todo ano, nessa mesma época. O que começou em 2003 com um filminho de terror histérico, mas assistível, transformou-se num transtorno obsessivo compulsivo do mercado que sugere algum programa de auditório da tortura. Arremessa um conceito que virou lixo já a partir do segundo filme, e impressiona muito que o público pipoca-zumbi dos multiplexes continue pagando para ver esse tipo de porcaria. Ontem estreou Jogos Mortais V (Saw V, 2008), que não foi mostrado para a crítica pernambucana. Fomos ver o filme com o público, na sessão de pré-estréia.

Com a graça e a espontaneidade de uma micareta, a série Jogos Mortais chama a atenção em dois quesitos. Mesmo tendo visto os quatro filmes que vieram antes, é impossível ter a mínima lembrança dos últimos três, prova do quanto decidiram ejetar trama, enredo, narrativa e insistir nos mesmos visuais monótonos de sempre.

Temos, portanto, uma série de calabouços verde-musgo com luzes piscando e instrumentos de tortura metálicos cuja simples imagem parece atrair efeitos sonoros tão constantes quanto irritantes. Habitando esse espaço, as mesmas vítimas genéricas de sempre, o que apenas reforça a idéia de filme de sacanagem sem sexo, mas onde cada momento pornográfico é construído (muito mal, aliás, a montagem é o que não há) em direção ao orgasmo da morte.

Já comentado antes, é irônico que Jogos Mortais V seja lançado na mesma semana em que o circuito local recebe Violência Gratuita (Funny Games), do austríaco Michael Haneke, estudo professoral raivoso contra o tipo de alegria débil mental que vende tortura como impulsos pisca-pisca como forma de diversão.

Filme visto no Recfe UCI, outubro 2008

'Violência Gratuita' e a 'Filme-Instalação'


A tela demoníaca...


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Num mercado de cinema onde a indústria investe em continuações e refilmagens como tentativas de garantir o certo, chega o autor austríaco Michael Haneke (A Professora de Piano, Caché) para apresentar uma leitura algo de anárquica da idéia de "remake" com o seu Funny Games, filme de 1997 que gerou choro e ranger de dentes em Cannes, no mesmo ano. Sua refilmagem Violência Gratuita (Funny Games U.S, 2007) passa como uma espécie de performance artística, uma refilmagem no sentido literal, quadro a quadro, falado em inglês e embalado para o mercado americano. A sigla U.S (EUA) que acompanha o título original soa como um irônico lembrete de como o cinema é tratado como produto "for export/para exportação".

Gus Van Sant havia tentado algo parecido com sua refilmagem/réplica de Psicose (1998), de Alfred Hitchcock, e é fácil enxergar em Van Sant o mesmo tipo de desejo pela idéia de um atentado estético e autoral que guia Haneke nesse aqui, enquanto estúdios (Universal no caso de Psicose, Warner com Funny Games) assoviavam e cogitavam lucro. Isso talvez explique a reação incrédula de espectadores, e mesmo de parte da crítica, que não vêem o sentido de imitar um original tão meticulosamente. Fica a certeza de que alguns autores não trabalham dentro de expectativas comuns.

O Funny Games original, falado em alemão, oferecia duas leituras possíveis: emocionalmente, seria um filme de suspense e terror desagradável como pouca coisa antes sentida, o próprio Haneke defensor dos espectadores que abandonam o filme no meio da sessão, xingando-o. Para ele, seria uma validação dos seus objetivos, o que apenas reforça a idéia de algo mais próximo a uma performance do que da idéia amplamente defendida de que filmes não precisam apenas existir, mas devem ser vistos, desfrutados.

Para os que sustentam o olhar até o fim, uma pequena história feroz desenrola-se na tela. Pai (Tim Roth, sua atuação com algo de familiar ao seu personagem também moribundo em Cães de Aluguel), mãe (Naomi Watts) e filho (Devon Gearhart) vêem sua casa de campo invadida calmamente por dois rapazes com roupa de tênis branca (Michael Pitt e Brady Corbet), cada um com uma luva também branca. Emissários de Haneke com liberdade de olhar para a câmera e falar com a platéia, eles irão torturar as três vítimas em jogos cada vez mais perigosos ou, nas palavras deles, "engraçados" (funny).

Exatamente como no original, temos não apenas o calvário dos personagens mas, principalmente, de quem assiste, tudo muito bem filmado, editado, dirigido e interpretado. Já a partir dos 15 minutos, instala-se na sala a sensação de que a platéia está numa prensa que aperta lentamente rumo ao insuportável, especialmente pelo rigor de nunca permitir um alivio refrescante, uma catarse, algo espetacular (e irritantemente) ilustrado na discutida cena em que um controle remoto é usado para corrigir um prazer brutal concedido ao espectador.

A outra leitura é intelectual, uma reflexão sádica de um pensador da imagem sobre o cinema comercial de horror onde a extrema violência é sempre tão sádica e explícita quanto sem sentido. Curiosamente, a outra estréia de hoje – Jogos Mortais V (Saw V) – é precisamente o tipo de coisa que Haneke ataca com seus alfinetes direcionados aos nossos olhos.

O que significa moral e fisicamente agredir alguém? Qual o peso de uma morte? Porquê no cinema tudo é tão simplificado, ao ponto de uma mutilação virar nada mais do que um efeito cênico rápido? No cinema de Haneke, o ato de violência vem sempre seguido de um silêncio atônito e sombrio, e o gosto na boca é amargo. Ele ainda esbanja cinema ao não mostrar graficamente nenhum dos atos de violência, pois sabe que o antes e o depois são ainda mais fortes.

Curiosamente, a exportação do filme para o mercado americano em caixotes com a marcação "U.S." pode ser considerada um fracasso. É fato que essa versão teve difusão maior do que o original austríaco nos cinemas americanos. Mesmo assim, o filme passou como mais um produto europeu vindo do inferno, restrito a guetos alternativos. No Brasil, Funny Games U.S está circulando no mesmo micro circuito que exibiu o original em 1998, no Recife, inclusive, no mesmo Cinema da Fundação. Isso, em grande parte, significa pregar para o que já foram convertidos, o que não deixa de ser uma pena.

Ao Entardecer



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Ao Entardecer (Evening, EUA/2007) tem todos os trejeitos do produto de "bom gosto" comercial. Medido e pesado, ao que parece, para conquistar prêmios de prestígio como o Oscar, a fotografia tem sempre um brilho dourado não importa aonde no quadro, a morte via câncer é serena e elegante e o cartaz do filme destaca orgulhosamente suas atrizes peso pesado como a razão de ser do todo. De fato, Vanessa Redgrave, Meryl Streep, Claire Danes, Glenn Close, Natacha Richardson e Toni Collette comprovam que este é um produto embalado para o mercado consumidor feminino e maduro, um antídoto para High School Musical e provável programa para anteceder um chá no final da tarde.

O esquema projetado para o Oscar não deu certo, Ao Entardecer passou em branco na última temporada da Academia, ninguém sabe o porquê. O filme do fotógrafo húngaro Lajos Koltai (atualmente cineasta) é tão mecânico quanto qualquer outro produto vencedor de estatuetas douradas, como Rain Man, Conduzindo Miss Daisy ou As Horas. O roteirista Michael Cunningham, aliás, é o mesmo de As Horas e, para completar, o esquema narrativo é precisamente o mesmo de O Curioso Caso de Benjamin Button.

Dividido entre o presente e o passado, a personagem principal é a cantora de jazz Ann (a inglesa Redgrave, crente de que está num filme melhor), em leito de morte, cuidada pelas filhas Nina (Collette) e Constance (Richardson, filha de Redgrave na vida real) numa linda casa grande e americana. Balbuciando lembranças dopadas com morfina, Ann recorda-se de um incidente nos anos 50, e entram flashbacks da sua juventude onde, misteriosamente, a personagem se transforma na muito americana Danes.

Ann era a amiga boêmia de Buddy (Hugh Dancy), universitário rico, sofisticado, provavelmente gay, que a convidou para o casamento da irmã dele, Lila (Mamie Gummer, filha de Streep na vida real), num final de semana. Lila casou com um chato na luxuosa casa de praia da família.

Embora ame loucamente Harris (Patrick Wilson), o filho idealista da governanta, rapaz que venceu na vida ao tornar-se médico, e também ali presente, Lila casa-se com o bobão. Harris também atraiu a jovem Ann naquele final de semana conturbado que marcou a todos. De volta ao presente, as filhas tentam entender palavras soltas ditas pela mãe, com curiosidade especial para saber quem é esse tal de Harris que ela tanto fala, inconsciente.

Não há nada de errado com uma história clássica como esta, a saudade do passado e da juventude são temas humanos imortais, a iminência da morte, o balanço de uma vida, potencial de beleza há. É mais o tratamento convencional de papel de carta, com musiquinha genérica que vulgariza emoções e as paisagens de revista de turismo, personagens que parecem sobras de uma adaptação apressada (baseado num livro de Susan Minot), psicologia fácil (a filha Nina irá aprender uma grande lição de vida, para sempre e sempre). Na verdade, a questão é essa, aceitar ou não uma caricatura confeitada da própria vida. Dependendo da sua visão, pode ser frustrante.

Filme visto no Cine Rosa e Silva, Recife, outubro 2008.

Espelhos do Medo


"Adorei Garotos Perdidos!"

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O titulo brasileiro é Espelhos do Medo (Mirrors, EUA, 2008), mas esse é o tipo de filme que poderia também se chamar Espelho Fatal, ou Espelho da Morte, ou Espelho Mortal. É um desses genéricos que dão má fama ao gênero terror. A estrutura, suspeita-se, vem de O Iluminado, de Kubrick, mas o tratamento é o mais rasteiro possível. Duas cenas !!g*r*a*t*u*i*t*a*s!! nos fazem lembrar que estamos vendo um filme de horror no sentido mais barato do termo, o resto poderia ser algum especial sobrenatural para a TV.

O diretor é o francês Alexandre Aja, que foi importado por Hollywood depois de fazer o muito interessante "assassino à solta" Alta Tensão (Haute Tension, tem em DVD), filme de grosseria memorável e sangrenta, do tipo violento demais até para os EUA. No seu primeiro filme americano, fez Viagem Maldita, refilmagem de The Hills Have Eyes (1977), de Wes Craven, ainda interessante, novamente pela agressividade.

Nesse Espelho Fatal (ou Espelho do Medo), temos um "tira" fracassado (Kiefer Sutherland) que aceita trabalhar como vigia noturno numa grande loja totalmente destruída num incêndio, cinco anos antes, na 6a avenida, em Nova York.

O cenário (na verdade, um prédio em Bucareste que o governo romeno de Nicolae Ceaucescu deixou inacabado) seria mais interessante se pudéssemos vê-lo direito, uma vez que o filme parece crer que ambientes escuros dão, necessariamente, medo. Kubrick parecia pensar diferente em O Iluminado, mostrando seu grande hotel de cabo a rabo com todas as luzes ligadas e, ainda assim, fez um filme de terror com T maiúsculo.

Sutherland, portanto, começa a ver coisas nos espelhos, e descobre que no incêndio morreram 45 pessoas. Não é exatamente um lugar alegre essa loja extinta, e logo ele irá pesquisar o passado do lugar que foi também um hospital psiquiátrico.

Ao invés de chamar o canal de TV mais próximo para mostrar a bagaceira sobrenatural, o filme faz o personagem agir misteriosamente econômico no seu estarrecimento ("tem alguma coisa no espelho!"), e logo será visto como insano, até mesmo quando alguém próximo a ele arranca a própria mandíbula numa das cenas horrorosas mais sem sentido que se tem notícia, suspeito que rebento da lógica Jogos Mortais.

Com outras claras influências dos filmes japoneses de terror recentes (cabelo, água no chão), Espelhos do Medo vai se arrastando em direção a um final que, visto o que passou durante a projeção, termina sendo uma idéia interessante nesse filme.

Filme visto no UCI Boa Viagem, outubro 2008

Saturday, September 27, 2008

Paul Newman Faleceu






(um dos meus filmes preferidos dele)

aos 83 anos.

Friday, September 26, 2008

Festival do Rio 2008



Filmes, Copacabana e gente com duas cabeças. É o Festival do Rio, meu décimo primeiro, aliás. Mais aqui. KMF

Meu breve guia do que ver. (***** max)

*LIVERPOOL * 1/2
* Aquele querido mês de agosto ****
* ELEGY * 1/2
* Procedimento Operacional Padrão ***
* CHE de Steven SODERBERGH *** 1/2
* ENTRE LES MURS de Laurent CANTET - ****
* GOMORRA de Matteo GARRONE ****
* LA FRONTIÈRE DE L'AUBE de Philippe GARREL - ***
* LA MUJER SIN CABEZA de Lucrecia MARTEL - ***
* LE SILENCE DE LORNA de Jean-Pierre et Luc DARDENNE ***
* LEONERA de Pablo TRAPERO - ***
* SERBIS de Brillante MENDOZA - ****
* SYNECDOCHE, NEW YORK de Charlie KAUFMAN - ** 1/2
* TWO LOVERS de James GRAY - ****
* UN CONTE DE NOËL de Arnaud DESPLECHIN - *** 1/2
* WALTZ WITH BASHIR, de Ari FOLMAN - *** ½
* BOOGIE, de Radu Muntean - ***
* A FESTA DA MENINA MORTA, de Matheus NACHTERGAELE - **
* TULPAN de Sergey DVORTSEVOY - *** ½
* SURVEILLANCE de Jennifer LYNCH - *** 1/2
* THE CHASER de Hong-Jin NA - *** 1/2
* THE GOOD, THE BAD, THE WEIRD de Jee-woon KIM - ***
* VICKY CRISTINA BARCELONA de Woody ALLEN - *** 1/2

Thursday, September 25, 2008

A Última Amante



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Os filmes da cineasta francesa Catherine Breillat são capazes de despertar discussões acirradas no pós-sessão, seja pela voz psico-internalizada do sexo, ou pelo uso incomum de uma pedra ou de um cabo de enxada num outro momento mais duro. Filmes seus como Romance (1999), Para Minha Irmã (Á Ma Soeur, 2001) ou Anatomia do Inferno (Anatomie de l'enfer, 2004, inédito no Brasil) passam como versões radicais do modelo francês de verbalizar a sensualidade, despertando a repulsa e o sono em muitos, ou o interesse em outros. A Última Amante (Une Vieille Maîtresse, França, 2007) representa o toque Breillat numa embalagem mais acessível do que a norma. O filme é não apenas inteligente e humano, mas também divertido.

Exibido em competição ano passado no Festival de Cannes, A Última Amante é uma adaptação literária de um romance de 1851 escrito por Jules Barbey d'Aurevilly. Investiga com enorme efeito o mito da amante, « a outra », a terceira peça (in)desejável de um casal, prazer para uma das partes (nesse caso, o homem), pesadelo para a sua mulher escolhida perante a sociedade. Essa semana, aliás, foi noticiado que uma amante no centro-oeste terá de indenizar uma esposa no valor de 31 mil reais não tanto por adultério, mas por perseguir obsessivamente a mulher oficial, ao ponto de ameaçar sua relação com os filhos e levá-la a perder o emprego.

A amante no filme de Breillat, a franco-espanhola Vellini (Asia Argento), não sugere ações do tipo, muito embora ela tenha qualidades particulares. Sabe-se que é filha de uma nobre mulher francesa com um toreador, relação ilícita que definiu sua posição na sociedade francesa (o filme se passa em 1835).

Seu caso de amor com o muito bem nascido Rino de Marigny (Fu'ad Ait Aatou) já tem mais de dez anos e é público e notório. Essa relação será testada com o anúncio de que Rino irá casar-se com a virtuosa boneca de porcelana Hermangarde (Roxane Mesquida), da alta roda.

Como em outras obras literárias do mesmo século (Les Liaisons Dangereuses/As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, ou The Age of Innocence/A Época da Inocência, de Edith Wharton), bem adaptadas para o cinema por gente como Stephen Frears e Martin Scorsese, temos dois cínicos manipuladores: o visconde de Prony (Michael Lonsdale, que presença!) e a condessa d'Artelles (Yolande Moureau), que discutem, tomando chá e comendo bem, sobre os impulsos romântico-carnais das peças de tabuleiro que manipulam.

Informada por Prony sobre os planos de casamento do seu amante, Vellini não mostra-se vencida, pois ninguém, segundo ela, tem idéia da força que existe entre ela e Rino. Mais tarde, ele chega para uma despedida apaixonada, a conclusão de um romance libertino e instável, mas que sempre resultou nos dois juntos, na cama.

O filme é inegavelmente de Breillat, que o realizou como prova da sua força pessoal, pois recuperava-se, aos 56 anos, de um derrame que a deixou parcialmente paralisada, meses antes de filmar. O cinema francês de época, sem grandes orçamentos, traz uma elegância no filmar que chama a atenção.

A sorte focada de Breillat, no entanto, está nos seus atores, que encarnam humana e visualmente os arquétipos clássicos de quem representam. Rino parece representar à perfeição o cavalheiro que simboliza o desejo feminino projetado de um ser masculino. Sua noiva é a perfeição virginal e nobre.

No entanto, é Ásia Argento que sai com o filme embaixo do braço. Essa atriz interessantíssima tem algo de inegavelmente punk, aspecto que tem sido utilizado com paixão por outros diretores em filmes ambientados hoje em dia (Terra dos Mortos, Transilvânia), mas que parece criar uma tensão muito interessante num filme de época como esse, e isso vai até mesmo para a sua tatuagem visível que Breillat parece ter deixado de pensar em maquiar.

Sua beleza que muitos confundem com feiúra tem algo de desafiador, seja de charuto na boca ou lambendo a ferida do seu amado. A composição de Argento para Vellini é talvez seu melhor papel no cinema, até agora.

Filme visto no Estação Botafogo 1, Rio, Setembro 2007

Reflexos do Passado




Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Questão recorrente, e fonte de alguns prazeres para o espectador, é a união entre música pop e cinema. Muitos filmes usam canções como muletas para trazer sensações que o próprio filme não é capaz de transmitir em imagens, para não falar dos que só querem empurrar uma canção comercialmente, a música tão importante quanto o Mc-Lanche Feliz que vai na promoção do filme. Poucos, no entanto, transformam a música (ou uma canção) num personagem, talvez o aspecto mais interessante de Reflexos do Passado (Flashbacks of a Fool, Inglaterra, 2008), filme do novato Baillie Walsh.

Esse diretor de comerciais conseguiu filmar seu projeto pessoal pela participação do amigo, aqui produtor e ator Daniel Craig, o atual James Bond. O título original traduz como "Lembranças de um Bôbo", e Craig (muito bom) é o personagem titular, o astro hollywoodiano Joe Scott. A apresentação de Joe não é das melhores, numa cena de sexo obrigatoriamente escura e 'artisticamente' desfocada. Na cama com o que mais parecem duas modelos, cheirando cocaína e com performance abaixo do esperado, Braillie vai de mão pesada ao tentar gritar para o espectador o quão decadente seu personagem está.

A coisa piora com a entrada em cena da sua empregada, Ophelia (Eve), que reitera a decadência do patrão num curto discurso que combina com a decoração fria e espaçosa da casa californiana à beira mar. Na verdade, o que Ophelia diz é inferior à sua pessoa, e à sua presença refrescante, uma vez que as outras demonstrações de humanidade próximas a Joe são a sua fornecedora de drogas, seu empresário tubarão em Hollywood ("eles querem alguém mais jovem, Joe!") e um diretor de filmes de ação sem nada na cabeça. Uma vida vazia, pois.

Toca um telefonema da Inglaterra, que informa Joe sobre a morte de um amigo de infância, Boots. A notícia irá levá-lo a um redemoinho de questionamentos pessoais e a uma bruta saudade de um período essencial na sua vida, nos anos 70. Abre-se um longo flashback onde a Inglaterra das memórias é ensolarada e sensual (filmada na África do Sul...), e onde a música pop era bela.

O jovem Joe (Harry Eden), filho de uma casa feminina (mãe, tia, irmã), também à beira mar, e aos 16 anos, inicia-se sexualmente com uma mulher casada (Jodhi May) escrava de hormônios e que parece ter a palavra "CATÁSTROFE" estampada na testa, aviso que o inexperiente Joe não consegue ler. Predatória, negativa e carente, ela é uma personagem interessante, com certeza, e ainda mãe de uma garotinha. Vale ponderar que é difícil não associar o fim narrado desta personagem a uma lógica puritana de ação e castigo divino.

Joe também paquera uma garota de sua idade, Ruth (Felicity Jones), menina linda e gente boa, a relação de amizade e intimidade (sem sexo) entre eles é claramente a melhor coisa do filme. São não apenas belos exemplos de juventude ansiosa pela vida, mas também cercados por uma ambientação perfeita dos anos 70 via décor, roupas e admiração sem limites pela música de David Bowie e Roxy Music.

É aqui que o filme revela-se claramente apaixonado por uma música: If There is Something (1972), do Roxy Music, que marca um momento pequeno mas significativo de felicidade, e que passa a assombrar o filme inteiro e talvez o próprio espectador como uma Madeleine de Proust para Joe e do seu tempo perdido. Observa-se que Ruth e If There is Something são personagens fortes, já que Reflexos do Passado parece esquecer de desenvolver Boots, pivô de tudo, o amigo que morreu jovem, e que conhecemos apenas superficialmente.

Essa música em particular funciona, pura e simplesmente, pelo fato de o filme se preocupar em tocá-la para que possamos ouvi-la, um pouco como um amigo que quer mostrar uma faixa incrível que precisa ser descoberta com som alto e livre de interrupções. Esse tempo, coisa tão rara no cinema moderno apressado, é raro. A química entre os personagens ajuda bastante, com destaque para a ótima Jones.

Mesmo com desdobramentos trágicos que beiram uma terrível novela das oito, e que revelam ainda a cartilha de que "sucesso e dinheiro não trazem felicidade", o espectador poderá lembrar, finda a sessão, o quão íntimos os ingleses são da música pop, talvez por terem, eles mesmos, a melhor música pop do mundo. O conceito de existir uma trilha sonora para as nossas vidas é perfeitamente utilizada. Prova disso está não apenas numa sequência final eficaz emocionalmente, mas por nos levar a perceber que a nossa melhor lembrança do filme coincide com o momento mais feliz da vida do seu personagem principal. Isso é bonito.

Wednesday, September 24, 2008

'Crítico' no Festival do Rio


Sábado, 4 de Outubro, 18h, Cine Palácio 1

(material de divulgação/press release)

O filme “Crítico” é a primeira experiência em longa-metragem do cineasta de Kleber Mendonça Filho (Vinil Verde, Eletrodoméstica, Noite de Sexta Manhã de Sábado). Neste documentário de 76 minutos, cerca de 70 críticos e cineastas, entrevistados no Brasil e no exterior, discutem o cinema a partir do conflito que existe entre o artista e o observador, o criador e o crítico. O filme foi produzido com incentivo do Funcultura do Governo de Pernambuco, com apoio da Faculdade Maurício de Nassau. É uma produção do CinemaScópio, em co-produção com a Link Digital.

O filme chega ao Festival do Rio depois de passagens pelos festivais de Tiradentes (estréia, em janeiro passado), BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cinema Independente), Curta-se (Aracaju), FAM (Florianópolis), Gramado e Atlantic Film Festival, em Halifax, Canadá. Curiosamente, a primeira entrevista feita para o filme foi em setembro de 1998, e sua exibição no Festival do Rio marcam os dez anos de trajetória do projeto.

"Crítico" passou ainda por dois anos de montagem e um trabalho de pesquisa, entrevistas e reunião de dados que teve início em 1998. Como crítico profissional de cinema (Kleber Mendonça Filho escreve para o Jornal do Commercio, no Recife e tem seu próprio site, o www.cinemascopio.com.br), a realização desse documentário foi guiada pelos questionamentos pessoais de quem se posiciona na indústria cultural tanto como cineasta, como também observador da arte e da indústria do áudio-visual. Entre 1998 e 2007, KMF registrou depoimentos no Brasil, Estados Unidos e Europa, a partir da sua experiência como crítico.

No filme, há depoimentos reveladores de criadores como Walter Salles, Nelson Pereira dos Santos, Costa Gavras, Tom Tykwer, Gus Van Sant, Eduardo Coutinho, Curtis Hanson, Fernando Meirelles, Carlos Reichenbach, João Moreira Salles, Cláudio Assis, Richard Linklater e Carlos Saura, para citar alguns. Críticos do mundo inteiro também foram registrados, representando meios como Les Cahiers du Cinéma, Telérama e Positif (França), O Globo, Folha de S. Paulo (Brasil), e Variety (EUA). É um filme sobre cinema, e também sobre os que o fazem.

Em termos técnicos, "Crítico" é fruto de um novo tipo de tecnologia que viabilizou uma obra realizada com câmeras portáteis digitais e uma montagem executada em computadores pessoais pelo próprio realizador, e pela montadora Emilie Lesclaux. A montagem final inclui imagens do acervo pessoal do realizador, como de arquivos internacionais de filmes que encontram-se em domínio público, disponíveis via internet. Esse material compõe o todo, estabelecendo um diálogo entre a palavra e as imagens do próprio cinema.

Sobre o realizador

Kleber Mendonça Filho nasceu no Recife, Brasil. Formado em jornalismo, tem um trabalho abrangente como crítico de cinema e também como co-programador da principal sala de perfil alternativo do Recife, o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Nos anos 90, ele fez documentários, obras de caráter experimental, e ficção como videomaker. Como cineasta, ele tem utilizado técnicas diferentes atualmente disponíveis (digital, 35 mm, fotografias still, animação). O foco do seu cinema está nas pessoas, no amor e no medo.

Os curtas metragens de Kleber Mndonça Filho, Enjaulado (1997), A Menina do Algodão (2003), Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e Noite de Sexta Manhã de Sábado (2006) ganharam mais de 70 prêmios nacionais e internacionais, com passagens por festivais como Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, Roterdã (Holanda), Clermont-Ferrand (França), Hamburgo (Alemanha), Cork (Irlanda), Upsala (Suécia), Huesca (Espanha) e a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.


Filmografia:

Enjaulado (Caged In, 1997, Betacam, 33 mins.)
A Menina do Algodão (The Little Cotton Girl, 2003, Mini-DV-35mm, 6 mins.)
Vinil Verde (Green Vinyl, 2004, stills/35mm, 16 mins.)
Eletrodoméstica (2005, 35mm, 22 mins.)
Noite de Sexta, Manhã de Sábado (2006, Friday Night, Saturday Morning, Mini-DV/35mm, 14 mins)


Sinopse

70 críticos e cineastas discutem o cinema a partir do sempre interessante conflito que existe entre o artista e o observador, o criador e o crítico. Entre 1998 e 2007, Kleber Mendonça Filho registrou depoimentos sobre esta relação no Brasil, Estados Unidos e Europa, a partir da sua experiencia como crítico. Com depoimentos reveladores de criadores como Gus Van Sant, Tom Tykwer, Eduardo Coutinho, Curtis Hanson, Carlos Reichenbach, Walter Salles e Carlos Saura, Crítico abre uma janela para uma arte cada vez mais julgada por mecanismos de mercado, e que luta para permanecer humana tanto no fazer, como no observar.


Ficha Técnica

Mini-DV - imagens de arquivo – fotos still / 35 mm
Cor e P&B, Dolby Digital, 76’
2008

Filme: Kleber Mendonça Filho
Produção, Roteiro e Montagem : Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Produção de finalização: Error! Contact not defined., Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Pesquisa : Emilie Lesclaux
Entrevistas e imagens adicionais (Paris) : Leonardo Sette, Francisco Fagan
Música original : DJ Dolores
Letreiros : Daniel Bandeira
Animação : Daniel Bandeira, Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Arte do cartaz : Kilian Glasner
Finalização : Link Digital
Mixagem: Estúdio Carranca

Trailer

Tuesday, September 23, 2008

Tropa de Elite USA



Do ponto de vista da linguagem, esse trailer roliúde de Tropa de Elite diz tudo. O filme parece ter sido feito para existir nessa peça pré-programada, fruto de algum 'trailer droid' que destaca com precisão todos os ticks industriais do filme. Cinema e globalização, tema rico.

e vejam isso: (obrigado Arnaldo, da comunidade do CinemaScópio no Orkut)

Sunday, September 21, 2008

A Casa da Mãe Joana


Juliana Paes é no filme a fada brasileira por excelência.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

A Casa da Mãe Joana (Brasil, 2007), filme de Hugo Carvana, passa como um alegre pesadelo para feministas. Esse filme retrô sugere algo como se ouvíssemos numa mesa de bar vizinha histórias machistas de homens que já foram jovens. A imagem assinatura do filme é a da sensualidade brasileira desejada de uma Juliana Paes fadinha masculina em coloridos baby-dolls, andando pra lá e pra cá. Esse curioso produto de mercado lembra o que restou do espólio da comédia popularesca nacional, com peças avulsas da chanchada, do programa de auditório e de uma 'sensibilidade uísque' tão cara a uma faixa social burguesa dos homens da boa idade, grupo que abriga Carvana, aos 71 anos.

Carvana - "o Dr. Andrade da novela Três irmãs" – é uma figura memorável no cinema brasileiro, sua personalidade artística não deve estar distante da sua própria pessoa. Fez um filme marcante em Vai Trabalhar Vagabundo (1973), onde o malandro carioca ganhou representação icônica. Fez o repórter Valdomiro Pena na excelente série Plantão de Polícia, na Globo dos 70/80 (porquê não existe em DVD?!), com o mesmo tipo de malemolência anarquista-zona sul-Rio de Janeiro.

Esse tom antigo marcado por toda uma trajetória revela-se presente no seu filme novo, e não deixa de ser uma curiosidade observá-lo. Rodado em grande parte em estúdio, com planos médios e fechados predominando, há, mesmo assim, um aspecto de "filme" que outros produtos atuais do tipo não parecem alcançar.

Temos um grupo de quatro homens safados que aplicam golpes em mulheres para ganhar dinheiro e conquistar outras mulheres. A filosofia é nunca ter que dar um dia de trabalho que seja, se dar bem sexualmente e beber uísque. Em ordem decrescente de idade, Antônio Pedro, José Wilker, Paulo Betti e Pedro Cardoso integram essa quadrilha. Terão que rever seus dogmas para saldar dívida contraída num esquema mulheril que não deu certo.

Desdobramentos beiram o indescritível, com Betti de prostituto semi-nu para mulheres maduras usando adereços de couro e protagonizando piadas de Viagra. Wilker vira enfermeiro para um comendador e travesti de idade avançada (Agildo Ribeiro de cadeira de rodas e vestido de mulher), enquanto Cardoso fica de caso com a esposa (Malu Mader) de um joalheiro. Como num vaudeville tupiniquim, entra ainda a mãe de Betti (Laura Cardoso), conseguindo aos poucos superar a mera 'piada de véia', e a filha de Wilker, uma menina chamada Tainacã (Fernanda Freitas, simpática), sempre com um sorridente shortinho, e, às vezes, sem.

Já o mais velho Pedro tenta incorporar a alma feminina brasileira ao virar uma falsa colunista mulher para algum jornal, sua musa é Juliana Paes, tratada pelo filme como uma aparição através de pirlimpimpins digitais alegremente toscos. A capacidade de Paes sorrir e fazer biquinho impressiona. O elemento macumba sela a bagaceira como indiscutivelmente brasileira. Arlete Sales, Miéle, Beth Goulart e Cláudio Marzo também compõem o elenco, ou o quadro.

Estômago


Raimundo Nonato descobre a existência do vidro, em Estômago.


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Saiu quarta-feira o resultado do edital do BNDeS. O título de um dos projetos premiados me chamou a atenção: 5 Vezes Favela – Agora Por Eles Mesmos, de Carlos Diegues, o "agora por eles mesmos" o fator curioso. Informa que o 5 Vezes Favela dos anos 60, filme patrono do fascínio do cine brasileiro com o universo da pobreza, terá, desta vez, o olhar do favelado, ainda que o projeto seja assinado por Diegues. De alguma forma, isso me leva a Estômago (Brasil, 2007), filme que reflete questões de cine-representação em imagens que vêm de cima para baixo (da pior forma possível). O elemento em questão é a figura do "nordestino".

Essa produção do Paraná tem a carpintaria relativamente segura do seu diretor, o curitibano Marcos Jorge, que usa como personagem principal Raimundo Nonato (João Miguel, de Cinema Aspirinas e Urubus), mais uma variação borrada do Didi Mocó/João Grilo reconfigurado para um ambiente urbano contemporâneo no sul do Brasil. O espectador poderá perceber para onde o filme quer ir a partir do exato momento em que Nonato desce do ônibus, elemento simbólico da cultura brasileira, ligação entre o norte e o sul.

Nonato, que Marcos Jorge compõe como uma 'pessoa simples' (fala 'engraçado', não sabe o que é gorgonzola) tem talento para a gastronomia. Sempre de cabeça baixa e grato por estar respirando, se deixa explorar por Zulmiro (Zeca Cenovicz), o dono de um bar, que exige longas horas de trabalho escravo. Dá a Nonato não um salário, mas um lugar para dormir e uma série de pequenas humilhações inspiradas pelo preconceito sul>norte.

Feliz com o pouco que tem, Raimundo Nonato revela-se ao preparar coxinhas, um sucesso que irá atrair a prostituta Íria (Fabiula Nascimento) e o restaurateur Giovanni (Carlo Briani). Esse outro escroque assume a tarefa de domesticar esse bom selvagem baiano/paraíba que dialoga tão bem com estômagos alheios. O tom de comédia italiana - que alguns colegas excêntricos confundiram com algo remotamente associado a Fellini - é aplicado ao todo via música, com resultados ainda mais sinistros.

Na verdade, a coisa piora. Paralelamente, vemos Nonato cumprindo pena na prisão. Algo de ruim aconteceu na sua trajetória de cozinheiro, talvez no seu relacionamento com Íria, ou com Giovanni. O roteiro de Jorge, Cláudia da Natividade, Fabrizio Donvito e Lusa Silvestre tem a funcionalidade e graça de um Uno Mille, mantendo as pontas amarradas até a grande revelação final, uma decepção, aliás, pois desde bem cedo que o espectador sabe exatamente para aonde estamos indo, canibalismo incluído.

Na prisão, Nonato também sobe hierarquicamente ao agradar a barriga do chefe do tráfico Bujiú (Babu Santana), e logo nosso homem simples irá dar a volta por cima no único espaço que um filme com olhar social tão raquítico poderia permitir para um Raimundo: nas cavernas sanitárias de qualquer sociedade que é o sistema penitenciário. É praticamente uma volta por baixo. Ajuda saber que Nonato revela-se ainda um assassino comedor de carne humana, prova do quão selvagem ele sempre foi, e sempre, ao que parece, será.

As formas de representação social são o grande tema do cinema brasileiro hoje, e um filme como Estômago revela aspectos importantes. Cineastas continuam filmando estereótipos sociais que só existem em clichês de larga grossura, o que explica olhares enviesados como os de Domésticas (1999), de Fernando Meirelles e Nando Olival, Tropa de Elite (2007), de José Padilha, ou este Estômago. Essencialmente, são realizadores que trabalham intimamente com universos que eles não conhecem. Os resultados são bonecos grotescos confundidos com personagens.

Ainda sobre representação, dois atores no filme ilustram isso. Se o excelente João Miguel ainda consegue humanizar Nonato com os olhos via contrabando, e sob os maus tratos imperativos do roteiro, é Santana via seu traficante encarcerado que ilustra esse olhar externo paralisante, de cima para baixo. Esse ator competente parece preso no inferno astral do mesmo papel sempre (criminoso, traficante de cara feia...) em praticamente todos os seus filmes, de Cidade de Deus a Uma Onda no Ar, Quase Dois Irmãos e Maré – Nossa História de Amor. Será irônico se Santana repetir, mais uma vez, a imagem imposta do mesmo bandido no 5 Vezes Favela – Agora Por Eles Mesmos, de Carlos Diegues.

Filme visto no Palácio 1, Festival do Rio, setembro 2007