Wednesday, May 20, 2009

Inglourious Basterds (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Em 24 horas, Cannes nos apresenta três filmes de realizadores cujas gerações e culturas são diferentes, mas que mostram-se totalmente apaixonados pelo cinema como arte e ofício. Mesmo que a percepção objetiva do quanto cada um desses filmes seja bem sucedido como obras ou produtos varie de acordo com o observador, Los Abrazos Rotos, do espanhol Pedro Almodóvar, Les Herbes Folles, do francês Alain Resnais, e Inglourious Basterds, do americano Quentin Tarantino, formam uma trinca rica o suficiente para manter a chama do amor pelo cinema acesa por alguns anos ainda.

Vejam o caso de Inglourious Basterds (Bastardos Inglórios, estréia no Brasil prevista para outubro). Como nas passagens de Kill Bill e À Prova de Morte por Cannes, o filme de Tarantino é claramente o ingresso mais cobiçado do festival esse ano, o que levou a organização a programar sessão extra para a imprensa em outra sala para além dos 2300 lugares do auditório Lumière, hoje, às 8h30 da manhã. Energia na sala alta, com aplausos já no apagar das luzes. Na entrada da sessão de gala, à noite, a subida das escadarias pela equipe do filme parou o trânsito.

Temos aqui a obra de um autor em clara fase de transição. Findo o filme, não foi difícil imaginar Quentin Tarantino tomando a rota de alguns autores americanos que viram-se mais próximos da Europa do que de Hollywood a partir de determinado ponto de suas carreiras (Orson Welles, Jim Jarmursch, David Lynch, Francis For Coppola). E se Tarantino estaria sendo soprado em direção à Europa, a sensação não vem só do fato de seu novo filme se passar na França ocupada da 2a. Guerra, e ser dialogado em inglês, francês e alemão.

Obstinado no sentido de transcrever para a sua escrita visual e falada o interesse amoroso que tem pelos filmes, pela história do cinema e os grandes artistas que fizeram o celulóide, Tarantino nos dá um filme de tom bem distinto se observado no contexto da sua obra riquíssima.

Seu talento, até agora, mostrava-se intelectualmente instigante com conflitos humanos de alta qualidade sob uma literatura natural e fluente. Isso resultava num impacto incomum que também se traduzia em taquicardia, a capacidade rara de pegar uma platéia pelo pescoço e só soltar no final.

Salvo o capítulo de abertura (como Lars Von Trier, seus filmes são divididos em capítulos), seu novo filme talvez seja menos impactante nessa leitura visceral da ação, mas nos deixa a sensação de sofisticação artística como poucas vezes conseguiu fazer. Talvez seja o seu filme mais distante dos EUA em estilo, decupagem e referências. De fato, parece impregnado pelo espírito do cinema francês, não só em prosa e verso mas também através de piscadelas apaixonadas em direção à paixão francesa pelos filmes.

Além disso, seria impossível não ver que há no filme a musa de Cannes, festival que ama tanto Tarantino. Na verdade, vendo a entrada do diretor e equipe hoje nas escadarias do Palais ficou bem claras as primeiras intenções do americano, de festejar o cinema como em nenhum outro lugar, e sua desculpa é exatamente fazendo filmes que estréiem aqui.

“Somos franceses, respeitamos os cineastas”, exclama Shosanna (Mélanie Laurent), a jovem proprietária e programadora de uma sala de cinema na Paris de 1944, claramente o lugar preferido de Tarantino em todo o filme. Shosanna Dreyfus é judia e a única sobrevivente da seqüência de abertura, onde o ator alemão Christoph Waltz faz horrores com o texto bilíngüe num jogo curioso que expõe os mecanismos do cinema de gênero hollywoodiano que sempre nos oferece nazistas falando inglês.

Tarantino nos dá essa longa abertura, filmada na fazenda de uma família francesa, e anuncia o primeiro capítulo – Era Uma Vez... na França Ocupada Pelos Nazistas”. Ele parece voltar ao embate de ameaças sugeridas do seu roteiro de True Romance (Amor à Queima Roupa), onde Christopher Walken e Dennis Hopper pintaram o tipo de miséria que Waltz e seu coadjuvante (Denis Menochet) pintam aqui. Tenso.

Com duas horas e 25 minutos, e salvo esse primeiro capítulo, Inglourious Basterds toma uma série de escolhas inusitadas que chamam a atenção para duas coisas: primeiro, a participação dos titulares, um grupo de soldados americanos de origem judaica cuja missão é matar e esfolar alemães, resulta num estranho blefe.

O pelotão, liderado por Brad Pitt, ganha o segundo capítulo onde mostra do que é capaz: trucidar nazistas e colecionar seus escalpos, invasão do gênero western nesse filme, em grande parte, europeu. Curiosamente, depois disso os bastardos permanecem ausentes do filme, sugerindo que Pitt talvez tenha trabalhado não mais que uma semana para filmar suas cenas.

Cada uma das seqüências tem uma estrutura teatral interessante pela economia (um pedaço de floresta, uma taverna, o bunker de Hitler, o cinema). Sensação incomum de um bom teatro muito bem filmado é reforçada pelo texto perfeitamente escrito e interpretado, como numa cena com Winston Churchill e um oficial britânico (Michael Fassbender), crítico de cinema na vida civil, especializado em cinema alemão. Fica a sensação de que, de fato, o filme quer mesmo é estar no cinema, na cabine de projeção, no auditório, sala de espera, marquise e tela.

É nesse espaço lindamente projetado em art-decó que o filme entra em delírio de amor por essa arte, aliada a uma fantasia judaica que não se manifestava em termos tão vingativos e escapistas para com o nazismo desde que Steven Spielberg, Philip Kauffman, Lawrence Kasdam e George Lucas criaram Os Caçadores da Arca Perdida, derretendo soldados alemães a torto e à direita. Melhor ainda, Inglourious Basterds nos mostra que toda uma herança de imagens cinematográficas guardadas têm força suficiente para acabar com uma guerra, fantasia tão bela quanto enlouquecida em cima dos livros de história. A confiança de Tarantino como criador ganha expressão máxima na frase assinatura do filme, “acho que essa será minha obra-prima. Na verdade, não seria estranho se o filme decepcionar alguns e converter outros para obra tão feliz.

Filme visto com som terremoto na Lumière, Cannes, 20 Maio 2009

4 comments:

Raphael M. said...

Kléber, essa crítica deu uma impressão (bem) mais positiva sobre o filme do que a opinião "mais fresca" postada antes. É só impressão mesmo ou realmente o filme desceu melhor depois de refletido?

CinemaScópio said...

Acontece uma coisa muito bonita quando se escreve sobre um filme. Ele playback na sua cabeça e de repente, você olha e sai o texto, seja lá qual ele for. É imprevisível e livre. É isso.

RENATO SILVEIRA said...

Perfeito. :)

Saulo Benigno said...

"Filme visto com som terremoto"

ahhhh, inveja. gostaria de ter ouvido isso.