Tuesday, January 19, 2010

Anselmo Duarte



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Escrever que o Cinema Brasileiro perdeu na madrugada do sábado Anselmo Duarte, aos 89 anos, passa apenas parte da idéia. O falecimento do ator paulista bem apessoado, astro de filmes da Vera Cruz e da Atlântida nos anos 50, marca também a morte do cineasta que entrou para a história da cinematografia no país como o único diretor brasileiro laureado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O filme foi o, até hoje, escandalosamente sub-apreciado no Brasil O Pagador de Promessas (1962).

A trajetória de Anselmo Duarte revela muito sobre o cinema no Brasil. O feito de Duarte, até hoje sem igual, é normalmente narrado pelos que contam a história do cinema brasileiro com um tom de pesar, como se a Palma não devesse ter acontecido. Como se Duarte não fosse merecedor da láurea e como se O Pagador de Promessas revelasse um filme menor, indigno de reconhecimento que filmes superiores não tiveram.

Importante contextualizar o significado de uma Palma. Como ocorre em outras cinematografias, a brasileira é claramente colonizada por duas culturas: a americana, via Hollywood, e a francesa, via crítica e Festival de Cannes. Entre os que fazem cinema no Brasil, pode-se dividir rudemente as tribos entre as que desejam o Oscar, as que desejam Cannes, e os que querem os dois.

Se o Oscar é uma espécie de reconhecimento universal e financeiro que agrega prestígio popular, é a Palma de Ouro de Melhor Filme no mais importante festival de cinema do mundo que estabelece o respeito intelectual e autoral para um artista no cinema.

Nos últimos 15 anos, o cinema brasileiro tem flertado com o Oscar nas indicações pontuais para “Filme Estrangeiro” via família Barreto (Fábio por O Quatrilho, Bruno por O Que é Isso, Companheiro?), e com um aumento substancial no prestígio e no número de indicações através dos filmes de Walter Salles (Central do Brasil e Diários de Motocicleta) e Fernando Meirelles (Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel).

A família Barreto volta, nesse momento, a verbalizar sonhos de um Oscar (em 2011) através da nova biografia do presidente Lula, dirigido por Fábio Barreto, com estréia marcada para janeiro em centenas de cinemas.

Já em Cannes, os mesmos Salles e Meirelles têm chegado na mostra competitiva, onde expoentes do Cinema Novo parecem ter (ou ter tido) espaço cativo, como Ruy Guerra, Cacá Diegues, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos.

Cannes foi espaço essencial para otimizar o impacto do Cinema Novo nos anos 60, onde filmes estandartes do movimento como Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro foram projetados com destaque, e premiados, em alguns casos. No entanto, nenhum deles levou a Palma.

Curiosamente, chega Anselmo Duarte com O Pagador de Promessas, em 1962. O segundo filme desse homem amplamente reconhecido como bonito, quase 1.90m, “galã” do cinema comercial, natural de Salto, interior de São Paulo.

Ele havia feito um sucesso popular de 1957, Absolutamente Certo, sátira bem administrada de costumes sobre a então jovem TV brasileira. De nenhuma maneira associado à estética e militância do Cinema Novo, Duarte leva a Palma de Ouro.

No júri, estava François Truffaut, que ajudou a escrever uma justificativa para o prêmio que, entre outras coisas, anunciava “um novo cinema no Brasil”. Há lendas e ‘disses me disses’ sobre a percepção da vitória de Duarte. Seus colegas cineastas brasileiros teriam ficado “chateados” pelo fato de Duarte ter batido Luis Buñuel em Cannes, que competia com O Anjo Exterminador.

Na verdade, há uma maneira negativa de lembrar a única Palma brasileira que é exatamente lançar a pergunta: "Anselmo Duarte é tão bom quanto os grandes? Talvez mmais produtivo seria lembrar apenas que Anselmo Duarte ganhou a Palma de Ouro, com O Pagador de Promessas.

Mesmo recebido na época com uma volta pela cidade de São Paulo em carro aberto, como se tivesse conquistado a Copa do Mundo, Duarte amargou, ao longo dos anos, um rancor dos que acusava estarem morrendo de inveja e despeito.

Vale observar alguma semelhança na percepção da crítica brasileira em relação a um outro filme (recente), também realizado por um diretor não engajado politicamente, que conquistou enorme sucesso em Cannes (passou fora de concurso): Cidade de Deus, de Fernando Meirelles.

CdD também rodou o mundo e tem em Meirelles uma figura cuja origem é a publicidade em São Paulo, realizador que não freqüenta os festivais de cinema no Brasil. O impacto do seu filme é tão grande quanto um certo ceticismo de parte da critica brasileira, a julgar por toda a discussão em torno da “cosmética da fome” aplicada ao filme no mês do seu lançamento, em agosto de 2002. Eu, aliás, respeito o filme sem conseguir admirá-lo totalmente. No entanto, é inegável a sua força e impacto, para o bem e para o mal, no cinema brasileiro do século 21.

Na sua época, O Pagador de Promessas deu a volta ao mundo e ganhou uma enorme quantidade de prêmios (Karlovy Vary, Moscou, São Francisco, Edinburgo...).

Com uma ginga de filme popular bem montado que parece apertar todos os botões certos, na hora certa, o filme de Duarte narra a história de Zé do Burro (Leonardo Villar), um “nordestino” que havia feito promessa para uma mãe de santo no sentido de salvar a vida do seu melhor amigo, um jumento.

Chegando em Salvador para pagar a promessa na Igreja de Santa Bárbara, ele é impedido pelo padre Olavo (Dionísio Azevedo), que rejeita a natureza “pagã” do compromisso. Isso causa racha entre religiosos (catolicismo e candomblé), povo, governo e imprensa, com forte menção à reforma agrária. É um rico painel dramático de Brasil.

Adaptado do texto de Dias Gomes (desgostoso com o resultado filmado), O Pagador de Promessas, é inegável, resiste bem ao tempo. É ágil, envolvente e dotado de elementos berrantes da cultura brasileira não tão distintos assim dos enfocados pela marca oficializada do Cinema Novo. Um final emotivo e impactante parece selar o efeito geral do filme, destacando a força do povo sobre a própria religião e poderes públicos. É um belo final.

Se o Brasil zelasse pelo seu acervo de imagens, tanto como produto cultural como de mercado, O Pagador de Promessas, única Palma de Ouro do cinema brasileiro, seria um clássico nacional já restaurado, disponível em caixa especial de DVD com toda a sua história nebulosa. Seria, quem sabe, exibido na TV todo natal, como assim são exibidos sempre clássicos nacionais de paises como os EUA ou França. Mas, não é.

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