Tuesday, January 19, 2010

Aquele Querido Mês de Agosto



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O cinema mais como ‘estado de espírito’ e menos como ‘trama’, ‘história’ e ‘grandes revelações’. São filmes que geralmente chegam de mansinho, como Aquele Querido Mês de Agosto (2008), descoberta portuguesa da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. O filme de Miguel Gomes flui como água, misturando convenções de fato e de ficção para chegar a uma verdade maior sobre uma cultura composta de lugar e pessoas. Eu vi o filme em Santa Maria da Feira, Portugal, não muito longe geograficamente de onde o filme se passa, mas no inverno. E sem legendas.

O filme é o fruto de um autor que vai colocando no papel (ou na sua câmera) observações sobre um espaço. O lugar é o interior de Portugal, no norte do país, no auge do verão europeu, onde acontece um festival de música. No hemisfério norte, agosto é o último mês de roupas leves, férias e calor. Algo na palavra 'agosto' soa como liberdade, ou a última liberdade. O italiano recente Almoço em Agosto também mostra um pouco isso, assim como dois clássicos de um estado de espírito bem distinto desse português, como Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon, 1975), de Lumet, e Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing, 1989), de Spike Lee.

No filme de Miguel Gomes, o festival do mês de agosto é do tipo onde não tocam bandas exatamente, mas “conjuntos”, daqueles com poucas ambições. É também o tipo de evento que une o tradicional (vejam a orquestra desfilando pelas ruas) à modernidade dos jovens.

Gomes nos dá um filme lindamente misturado, como uma mixagem de sons e imagens. Há a proposta esclarecida de se fazer um filme de amor sobre o guitarrista de uma banda que apaixona-se pela prima, da mesma banda, ele de Lisboa, ela do interior. Gomes abre o processo filmando-se em negociações com o seu produtor, suas dificuldades com os atores, com o roteiro, a equipe e mesmo o som.

Uma primeira parte parece nos apresentar o universo daquele lugar, que vai do louco da vila que pula da ponte todo ano à engraçada aspereza dos nativos, relações patriarcais marido-mulher especialmente marcantes.

Na segunda parte, a história de amor, seios desnudos jocosamente inclusos, ganha mais espaço, embora Gomes não pareça querer simplificar as coisas. O filme dentro do filme toma rumos inesperados, e o diretor dentro do diretor cogita fazer uma história de terror estilo “chapeuzinho vermelho” (“capuchinho vermelho” na versão lusa), o que talvez explique a recorrência de machados na narrativa.

O uso de matalinguagem no cinema geralmente não funciona quando o responsável está ciente demais do malabarismo como exercício intelectual. No caso de Aquele Querido Mês de Agosto, a metalinguagem passa mais como um rótulo barato e não chega perto de sugerir o que o filme é.

Suspeita-se que Aquele Querido Mês de Agosto seja fruto de um processo orgânico acompanhado com interessado espanto pelo seu autor, generoso com seus lugares, personagens e objetos. Há, no entanto, a sensação de que a metragem de 150 minutos excede a carga.

De qualquer forma, o filme de Gomes é capaz de manter o espectador, em grande parte, com um leve sorriso constante, cortado com altas gargalhadas. Num mundo cada vez mais achatado pelo rolo compressor da globalização, é animador ver esse retrato/ensaio universal sobre uma aldeia marcar a sua presença com um ponto de vista tão local e peculiarmente universal.

Filme visto no auditório da Biblioteca da Feira, Santa Maria da Feira, Portugal, Dezembro 2008.

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