Tuesday, January 19, 2010

O Milagre de Santa Luzia



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O Milagre de Santa Luzia (Brasil, 2009), de Sérgio Roisenblit, passa como um passeio pela sanfona no Brasil, aparentemente tomando como ponto de partida cultural o nascimento de um dos maiores embaixadores do instrumento na cultura brasileira, Luiz Gonzaga. 13 de dezembro é a data do seu nascimento, em Exu, Pernambuco, dia de Santa Luzia.

No filme, um registro feito em digital e película com generosa trilha sonora bem mixada que destaca o som da sanfona em várias linguagens culturais, o embaixador é Dominguinhos, que parece dar continuidade verdadeira ao legado de Gonzaga, sempre nos seus próprios termos.

Dominguinhos é levado a dirigir um carro por diferentes regiões do Brasil, começando pelo sertão de Pernambuco e Ceará, onde estabelece-se um padrão artístico claramente construído em cima de raízes fortes sensíveis à identidade cultural da região, fortalecida por questões geo-políticas de migração dentro do próprio país.

Dominguinhos, por exemplo, deixou Pernambuco com a sua família rumo a São Paulo e Rio, num pau de arara, viagem mítica do imaginário do nordeste, e que ele dá aqui uma emotividade que faz grande bem ao filme.

Depois da meia hora inicial, focada no nordeste e nas histórias de sanfoneiros como Arlindo dos 8 Baixos, com o bônus de um registro precioso de Patativa do Assaré, O Milagre de Santa Luzia sofre uma queda ao ter a preocupação didática de nos dar um panorama nacional da sanfona. O filme, portanto, nos leva ao Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo. O espectador começa a suspeitar se logo estaremos na Romênia e o envolvimento inicial passa a ser diluído.

Questão interessante é observar uma noção, talvez viciada dada a origem e interesse pessoal do observador, do quanto a verdadeira expressão artística parece estar no nordeste, se pensarmos na arte como expressão crua de sentimentos, e também de herança.

Uma demonstração interessantíssima de estilo e capa cultural vem de um sanfoneiro gaúcho, que nos mostra o jeito que o sanfoneiro nordestino tem de tocar em tom comparativo com o jeito gaúcho. O primeiro, soa manhoso e carinhoso, o gaúcho duro e metódico.

Depoimentos gaúchos falam de uma herança herdada de terras que eles não conhecem (por exemplo, a Itália), Dominguinhos e Pinto do Acordeon discutem sentimentos íntimos que chegam intactos às suas sanfonas, a experiência pessoal como trunfo, a conexão com a terra, com a infância.

Pinto do Acordeon, inclusive, conta uma história muito engraçada que ilustra a chegada de elementos externos para serem acoplados de maneira imposta a toda uma tradição. Numa festa, na Paraíba, um convidado teria obrigado o musico, sob ameaça de uma peixeirada no fole do instrumento, a cantar em inglês. Pinto do Acordeon, portanto, sai com uma versão engraçada de New York New York, sanfonado e num inglês de onomatopéia.

Não é um filme de ousadias estéticas como o rico relato montado de O Homem Que Engarrafava Nuvens, de Lírio Ferreira, sobre Humberto Teixeira, parceiro de Gonzaga, mas O Milagre de Santa Luzia nos dá hoje um passeio agradável por sons e artistas, pela própria idéia de identidade cultural, e deverá agregar valor maior com o tempo através do seu arquivo criado.

Filme visto no Plaza Casa Forte, Recife, Novembro 2009

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